Mentiras e verdades sobre energia nuclear
cada obra oferecerá uma resposta a partir de suas próprias inquietações, que, nos casos mais interessantes, recusam estratégias narrativas meramente denuncistas ou sentimentalistas, lidando com a dificuldade da linguagem diante de um real traumático, de difícil apreensão.
Tal é a força da série “Chernobyl”. Oferecendo aos espectadores uma viagem ao coração de um dos maiores desastres da história, a explosão de um dos reatores da usina nuclear ucraniana em abril de 1986, a minissérie, em cinco capítulos e apenas cinco horas de duração, reconstitui o momento da explosão, a vasta operação de limpeza, a subsequente investigação do acidente e as consequências humanas, políticas e sanitárias que o desastre deixou.
Caracterizada por extrema verossimilhança na representação da tragédia, dos corpos irradiados às placas dos carros soviéticos, passando pelo teor dos diálogos entre funcionários da usina, burocratas, cientistas e moradores da região, “Chernobyl” evita velhos clichês narrativos e não poupa o espectador de uma angústia persistente.
Nessa encenação pós-apocalíptica, em que não há heróis, vilões e muito menos qualquer possibilidade de superação final, o roteirista Craig Mazin e o diretor Johan Renck acham o tom justo entre o filme de terror, o thriller político e o drama realista. Como se nota no decorrer da série, a dupla não economiza em pesquisa histórica nem abusa de efeitos especiais e de excessos que costumam abalizar tentativas de representação da catástrofe.
A julgar pela altíssima pontuação (9,5 numa escala até 10) recebida no site IMDb (Internet Movie Database), a maior base de dados sobre audiovisual na internet, o público dos quatro cantos do mundo foi bastante tocado pela série, que se tornou a mais bem avaliada dentre as produções concorrentes.
Publicações como o New York Times e o francês Le Monde não pouparam elogios; figuras como o cineasta John Carpenter e o escritor Stephen King reconheceram qualidades. Até o ministro da Cultura russo, Vladimir Medinski, se empolgou com um “magistral!”, enquanto o Kremlin debatia se estava diante de um salutar mergulho no passado soviético ou de um novo golpe de propaganda ocidental contra Moscou.
Seja como for, nesse país que até hoje não realizou um trabalho de memória e elaboração da violência de Estado cometida pela antiga União Soviética, uma outra versão do desastre já está sendo gestada.
Baseada em uma histórica verídica e “ainda não contada”, conforme promete sua propaganda, “Chernobyl” está longe de ser uma série “documental”, como algumas leituras apontam, deixando margem para muita fantasia e teatralidade.
Mas o tom sombrio e esverdeado da fotografia, como uma paisagem em vias de se decompor ou apodrecer, e o peso que cada ator carrega em cada pequeno gesto e no próprio corpo, com a densidade daqueles que já perceberam que não há salvação pessoal possível, fazem da série uma experiência narrativa notável, alegoria do fim e da destruição.
Nessa construção, o destino dos personagens é desprivatizado, despossuído, articulando-se, incontornavelmente, ao destino coletivo de uma nação em vias de se esfacelar e ao do próprio planeta, de agora em diante contaminado. A dimensão pessoal é assim remetida à esfera pública, por meio de uma genealogia das mentiras de Estado.
“Qual é o custo da mentira?”, pergunta-se o cientista Valery Legasov logo nos primeiros minutos do primeiro capítulo, uma fala que faz reverberar, intencionalmente, o atual momento político pelo qual o mundo em geral, e o Brasil em particular, tem passado, marcado por toda sorte de “disputa” (um eufemismo para manipulação, negação e falsificação) em torno das verdades científicas e históricas.
Em entrevista à revista Vice, Mazin diz que diante de um desastre provocado por uma sucessão de mentiras que não pouparam a vida de dezenas de milhares de cidadãos soviéticos, expostos a altíssimos graus de radiação sem proteção, ele só poderia responder com uma encenação baseada num compromisso com a verdade.
Esse vínculo ético com o passado e com o destino de homens e mulheres comuns, diretamente afetados pelo desastre, foi sem dúvida amparado pela riqueza e contundência dos testemunhos recolhidos e editados pela jornalista e escritora Svetlana Aleksiévitch.
Em seu “Vozes de Tchernóbil” (Companhia das Letras), a autora bielorrussa escreve que o acidente nuclear não foi apenas uma catástrofe humana, política e ambiental, mas, antes de tudo, “uma catástrofe do tempo”, já que o tempo da vida humana e da vida do planeta foi completamente redimensionado face ao tempo “eterno” da radiação.
Declarada fonte de inspiração de Mazin, apesar de estranhamente não mencionado nos créditos da série, o livro foi escrito ao longo de 20 anos por Aleksiévitch e compõe sua obra de teor testemunhal, laureada com o Nobel de Literatura em 2015: expressão máxima do reconhecimento oficial que o campo do testemunho e dos estudos do trauma vem adquirindo desde o início dos
Em um momento de crise da democracia e de grave ameaça ambiental ao futuro do planeta, ‘Chernobyl’ chega como uma mensagem de advertência, endereçada a essa espécie de ‘Weimar global’ em que nos encontramos
anos 1980 —e do qual a série “Holocausto” foi um disparador.
Dedicada àqueles que pereceram e aos que sobreviveram, “Chernobyl” tenta dar visibilidade e legibilidade, nas palavras de Aleksiévitch, a um “enigma ainda difícil de decifrar”, a “uma realidade que está acima do nosso saber e acima da nossa imaginação”, fazendo eco à célebre afirmação de Elie Wiesel, que, tendo sobrevivido a Auschwitz, escreve: “Falar é difícil, senão impossível. Mas calar é proibido”.
Emum momento de crise da democracia e grave ameaça ambiental ao futuro do planeta, “Chernobyl” chega como uma mensagem de advertência, endereçada a essa espécie de “Weimar global” em que nos encontramos. Mas agora, diferentemente da época da Guerra Fria, o telefone vermelho não vai tocar. O alarme soou faz tempo.
Como lembrou o cronista Antonio Prata em sua coluna “Bem-vindos a Chernobyl” nesta Folha (16/6), “num mundo 4°C mais quente, em 2100, boa parte da África, da Ásia, das três Américas e da Austrália ficarão inabitáveis”. E continua: “Estima-se que a poluição causada pela queima de combustíveis fósseis mate 7 milhões de pessoas por ano. Um holocausto a cada 12 meses”.
Não seria exagero ponderar que, assim como “Holocausto” foi decisiva na percepção do que foi a catástrofe da Segunda Guerra, “Chernobyl” poderia vir a adensar os debates em torno do beco sem saída energético em que nos metemos, entre a iminência de novos acidentes nucleares catastróficos (com a utilização de energias “limpas”, como
a nuclear) e a morte a prestação do planeta por meio do emprego abusivo de combustíveis fósseis.
Entre um e outro extremo, “Chernobyl” vocaliza as preocupações, sobretudo, de jovens gerações de consumidores, cidadãos e espectadores —que aliás já vêm se mobilizando em diversas cidades do mundo— em torno da crise ambiental planetária e seu horizonte cataclísmico.
Face à “colapsologia”, novo domínio de estudos que emergiu na França a partir das pesquisas de Pablo Servigne e Raphaël Stevens, autores da obra “Comment Tout Peut S’Effondrer” (“como tudo pode desmoronar”), a pergunta sobre o que pode o cinema e o audiovisual diante das violências e negligências dos Estados precisa ser recolocada. Poderia “Chernobyl” disparar uma nova “era da testemunha” que impacte efetivamente ações e políticas? Que coloque em foco no debate público alternativas energéticas renováveis?
Evidentemente, não cabe ao campo da arte e da cultura formular políticas públicas, mas se pode pressupor que lhes cabe inventar novas linguagens e pedagogias.
O cinema, como se sabe, não é simplesmente um conjunto de imagens e sons, uma reunião de representações da realidade, mas um agente cognitivo e sensível, um operador, potencialmente transformador, da própria realidade.
Por isso, defender a vocação pedagógica do audiovisual não significa dizer que as obras devam nos dar lições de moral e nada tem a ver com a violência propagandista e autoritária inerente aos esforços de “reeducação pela imagem”.
Como defende o filósofo e historiador das imagens Georges Didi-Huberman, a pedagogia que interessa ao cinema é aquela que, na qualidade de uma poética das imagens, pode abrir o sentido (significação) aos sentidos (sensações) aguçados do espectador. Trata-se então de uma pedagogia baseada nas emoções que, não se reduzindo a simples estratégias de identificação, pode engajar os espectadores de maneira ativa e reflexiva, fazendo com que possamos abrir os olhos para a violência do mundo inscrita nas imagens.
O que a Shoah, ou o Holocausto, como paradigma da dificuldade da representação da violência extrema assinala é que esse singular e incomparável momento da história precisa, justamente, ser comparado, isto é, não ser deixado isolado em seu devir histórico.
E, para isso, é preciso uma pedagogia que tente dar legibilidade àquilo que até então parecia ilegível, incompreensível ou invisível. Uma pedagogia, em suma, que nos estimule a imaginar. Nem que seja imaginar um outro fim do mundo possível.