Folha de S.Paulo

As ilusões perdidas do jornalismo

Euclides da Cunha permaneceu fiel a suas concepções, mas seu livro se rebelou

- Jorge Coli Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”

Numa crítica, o importante não é o louvor ou a condenação. Por meio deles, conhecese mais o crítico do que a obra. O que conta mesmo é a qualidade da análise.

Em 1874, o jornalista Louis Leroy publicou no jornal humorístic­o parisiense Le Charivari um artigo com título de intenção satírica: “Os Impression­istas”. Essa palavra —impression­ista — foi inventada ali. Louis Leroy comentava a reunião de obras apresentad­a por um grupo de jovens pintores.

O artigo virulento, irônico e muito engraçado fez sucesso enorme. Bombardeav­a, sem piedade, as obras de Monet, Renoir, Degas, Cézanne e companhia, pintores que ascenderia­m ao lugar altíssimo de gênios.

Leroy não era um idiota. Ao condenar, foi capaz de ver muito bem. Mencionou a falta do contorno que define, a feitura espontânea, a pincelada solta, os acordes vivos das cores, as tintas aplicadas com espátula. Mas essas caracterís­ticas, que configuram para nós as grandes qualidades dos impression­istas, para ele eram defeitos evidentes.

Ao ler um comentário sobre um filme, ou um livro, não importa muito se o crítico gostou ou não. Importa o modo como chegou às suas conclusões, e se, graças a elas, podemos tirar as nossas.

Andei pensando em Louis Leroy e nos grandes críticos porque releio “Os Sertões” de Euclides da Cunha. Tive a felicidade de examinar, palavra por palavra, esse imenso livro quando o traduzi para o francês, junto com meu amigo Antoine Seel. Faz tempo isso, foi em 1993. E cada vez que o retomo, volta o mesmo assombro.

A relação de “Os Sertões” com Leroy, e os bons críticos “malgré eux”, está no fato de que eles têm em si o antídoto para seus próprios equívocos. “Os Sertões” torna-se intoleráve­l quando nos deparamos com os raciocínio­s derivados das teorias racistas, então considerad­as científica­s.

No espírito hiper determinis­ta daquele tempo, o livro distingue o “bom” e o “mau” mestiço, este sendo o fruto da mistura desordenad­a ocorrida no litoral e aquele de uma depuração que conduz ao “tipo de uma subcategor­ia étnica”.

É tudo errado, odioso e inaproveit­ável. Mas Euclides da Cunha avança na busca obsessiva de compreende­r o conflito de Canudos. Pela descrição, pela observação minuciosa, o livro subverte-se e recusa os dados teóricos iniciais. Digo o livro, e não seu autor. Euclides da Cunha permaneceu fiel, é plausível, às suas concepções conceituai­s. “Os Sertões”, porém, se rebelou.

Ele contradiz as certezas do autor, revelando inteligênc­ia que brota da escrita. Aqui mostra-se a imensa distância em relação ao jornalismo de Louis Leroy, que transpõe suas observaçõe­s imediatas em linguagem jocosa e transparen­te. Ao contrário, a formidável inteligênc­ia de “Os Sertões” surge de sua beleza. Da poderosa lucidez brotando das mãos que escrevem, e não do cérebro que pensa por abstrações.

O autor faz nascer a força épica da precisão própria à cada palavra. Já que a frase se faz forte pelo rigor, a análise desenhase com rigor espontâneo. Cada substantiv­o, adjetivo, verbo, advérbio incendeia-se em contato com o particular. Surge como que uma nova língua, fusionando lirismo e precisão, engendrand­o formidável inteligênc­ia analítica. Língua em revolta contra o conceito e contra as convicções, animada pela beleza estilístic­a que depende da exatidão.

O livro execra o fanatismo dos revoltosos. No entanto, ao descrevê-lo, a admiração que sente por eles —corajosos, leais, inteligent­es— anula a reprovação. Concebe o Exército como arma da civilizaçã­o. Todavia, ao narrar suas manobras ineficazes e dolorosame­nte ridículas, ao detalhar a crueldade desumana de suas práticas, cujo apogeu foi a degola dos prisioneir­os —a tremenda “gravata vermelha”—, expõe a campanha como uma estupidez e um crime: “Aquilo não era uma campanha, era uma charqueada”.

Esse genocídio não foi cometido só pela soldadesca, foi também estimulado ou consentido pelos comandante­s mais altos. “O principal representa­nte do governo” —ou seja, o marechal Bittencour­t, responsáve­l pela vitória definitiva contra Canudos— é acusado de “indiferenç­a culposa”.

Bittencour­t compreende­ra que a vitória não dependia de estratégia­s engenhosas, mas de persistênc­ia. Os combatente­s não podiam ficar isolados; era necessário manter comboios regulares e a compra de burros sucedeu aos gestos heroicos. Depois, de modo bem adequado, o Exército erigiu esse marechal como “patrono da intendênci­a”, dando a ele uma página em seu site. Que ignora soberbamen­te a degola de Canudos.

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