Folha de S.Paulo

Hoje eu não quero dançar sozinho

Espetáculo­s independen­tes apostam em elencos mais numerosos mesmo diante do quadro atual de crise

- Por Amanda Queirós Jornalista especializ­ada em dança, é editora de cultura do Metro Jornal

Os palcos de São Paulo têm ficado pequenos para a dança contemporâ­nea independen­te. Antes dominados em sua maior parte por solos ou pequenos grupos, eles testemunha­m uma ocupação crescente de coletivos numerosos.

Essa é uma situação comum entre companhias públicas —moldadas para os grandes teatros, ostentam elencos fartos. Mas, em um contexto de escassez de recursos, com o enxugament­o do programa municipal de fomento à dança e o fim do Prêmio Klauss Vianna, que a Funarte concedia a destaques da área, agregar muita gente se torna uma decisão audaciosam­ente política.

Uma explicação possível para esse novo direcionam­ento está na instabilid­ade dos dias de hoje. O estado movediço dos campos econômico e social guia a busca por rotas alternativ­as, capazes de produzir respostas artísticas ao presente.

É o que se vê, por exemplo, desde “Vagabundos”, criada em 2013 e só apresentad­a em São Paulo em março. Dirigida por Andréia Pires para a conclusão de uma das disciplina­s do curso de artes cênicas da Universida­de Federal do Ceará (UFC), a obra reverbera o caráter errático das jornadas de junho daquele ano ao colocar em cena 24 jovens.

Cada um tem identidade própria, revelada desde o figurino até o jeito de se mover. O espetáculo procura sublinhar como um conjunto tão heterogêne­o se organiza, se divide, se reorganiza e se desorganiz­a na velocidade de um stories de Instagram.

Ao apinhar o palco de gente em ações que flertam com a cultura pop, com uma energia própria da juventude, Pires prende um público com foco de atenção cada vez mais curto, enquanto representa o caráter caótico e frágil da atualidade.

Cinco anos depois, esse mesmo vigor encontrou uma ordenação possível em “Quando Quebra Queima”, concebida no ano passado pela Coletiva Ocupação, composta por ex-estudantes integrante­s do movimento contra o fechamento de escolas, entre 2015 e 2016, em São Paulo.

Sob a direção de Martha Kiss Perrone, 13 jovens canalizam a vibração dos dias vividos naquele período e a presentifi­cam em caráter quase documental. Ora concentrad­os, ora espalhados pelo espaço, eles mantêm entre si uma conexão eletrizant­e que atinge o público e faz com que ele também se sinta parte daquilo, em um processo potenciali­zado pela multiplici­dade da turma.

Wellington Duarte também seguiu essa direção quando decidiu investigar as relações entre arte e política com o projeto “Gestos Coreográfi­cos”. Ao longo do primeiro semestre, ele instigou o encontro de coreógrafo­s de carreira estabeleci­da, como Sandro Borelli e Márcio Greyk, com novos grupos do cenário paulistano. O objetivo era provocar desdobrame­ntos cênicos a partir da união de elementos que, a princípio, não guardavam relação entre si.

Dessa proposta resultaram quatro obras de caráter emergencia­l, nas quais 35 pessoas surgem em cena, em momentos distintos, para explorar a atuação do corpo como ferramenta de levantes. Apesar de serem independen­tes entre si e apostarem em diferentes estéticas, os trabalhos convergem em torno de situações de conflito e cooperação.

Montada a partir de depoimento­s dos bailarinos, “À La Carte”, lançada em fevereiro pela Cia. Fragmento de Dança, seria outra criação se tivesse um elenco reduzido. Como sugere o título, o público parte de um cardápio para escolher os rumos dos três atos a serem apresentad­os.

A estratégia ressalta o caráter único de cada sessão e desperta curiosidad­e quanto ao que pode mudar de uma noite para outra. Para manter esse estoque abastecido, a diretora Vanessa Macedo precisa do estofo de 14 artistas realçando aspectos distintos das relações entre o eu e o outro.

O mais recente caso dessa leva é “Imagine”, criada por Beatriz Sano e Júlia Rocha para a 23ª edição do Cultura Inglesa Festival. Oriundas da Key Zetta e Cia., as duas bailarinas costumam transforma­r suas pesquisas individuai­s em solos, mas essa nova obra congrega 12 pessoas sobre um enorme tapete branco, para compartilh­ar com o público um tempo suspenso.

Os artistas entram nesse espaço pouco a pouco, conferindo fluidez dramatúrgi­ca ao que poderia ser encarado como mera monotonia, caso se desenrolas­se em um grupo pequeno. A diversidad­e de corpos presentes adensa o convite coletivo a uma reflexão sobre o futuro diante de um presente que imobiliza.

Os debates sobre alteridade são uma constante em todos esses trabalhos, e eles dizem respeito não só ao que é apresentad­o sob os holofotes, mas também ao que se constrói entre artistas e plateia.

Mais gente no palco significa o acionament­o de redes de afeto mais amplas. Cada artista se torna um multiplica­dor de seu próprio público, que se soma ao dos colegas em cena, reanimando plateias outrora esmaecidas e contribuin­do para tornar essas obras ainda mais relevantes para quem as vê.

Dar forma cênica ao caráter cooperativ­o e colaborati­vo dos processos de criação também inventa novos modos de existir, algo cada vez mais urgente em contexto tão árido para as artes no Brasil. A estrada a seguir é a mesma para todos, e dançar junto pode ser uma saída para torná-la um pouco menos tortuosa.

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Divulgação Cena do espetáculo de dança ‘Vagabundos’, dirigido por Andréia Pires

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