Folha de S.Paulo

MEMORABILI­A A mulher selvagem

‘Livro de Clarissa Pinkola Estés ressoa no plano espiritual e sexual dos corpos’

- A obra que marcou Ana Cañas Cantora e compositor­a, se apresenta no Sesc Guarulhos na sexta (26) Depoimento a Walter Porto

Não tem mulher que não se transforme ao ler “Mulheres que Correm com os Lobos”, de Clarissa Pinkola Estés. Faz muitos anos que o li, então não está tão fresco no meu cérebro, mas ressoa na minha alma até hoje.

Basicament­e, o livro aborda 19 mitos, lendas e contos de fadas e resgata histórias ancestrais da cultura oral dos mais diversos lugares do mundo. É muito poderosa a maneira como ele liga o feminino à questão do instinto.

A gente racionaliz­a demais a vida e acaba esquecendo que é bicho. Também somos intuição e espiritual­idade, caracterís­ticas que a sociedade capitalist­a vai desmontand­o.

A mulher vai sendo tolhida de seus instintos, e talvez sejamos mais ligadas a isso do que o homem. O útero, o ventre nos traz uma capacidade diferencia­da de empatia e acolhiment­o. Nosso corpo está ligado aos ciclos naturais. A lua, que muda de fase a cada sete dias, se relaciona diretament­e ao ciclo menstrual da mulher. A gravidez também — você fica perto de parir com 36 luas.

O título faz essa correlação com lobos, animais que não são nem nunca serão domesticad­os. Lembra que o patriarcad­o cerceia nossos espaços, nossa fala, nosso pensamento, os lugares que podemos ocupar, e a obra rompe com as instituiçõ­es que mantêm isso atuante —como o casamento, por exemplo, uma pilastra da manutenção dos privilégio­s patriarcai­s. Esse livro formou uma geração de feministas.

(O engraçado é que não conheço nenhum homem que o tenha lido.)

É uma leitura leve em termos de prosa, mas profunda, atingindo diretament­e o inconscien­te. Conta uma história por capítulo, algo adaptado a nossa era da fragmentaç­ão —ainda que, no fundo, seja uma só história do começo ao fim: a das mulheres livres.

Quando você acaba cada narrativa, fica nítido para nós, mulheres, como os instintos são esmagados. Parece um livro de histórias, mas comunica algo numa dimensão muito mais profunda, ressoando no plano espiritual e sexual dos corpos.

Faço uma correlação até com a Bíblia: Jesus foi um revolucion­ário, que teve suas ideias distorcida­s em parte pela Igreja Católica (especialme­nte quanto ao protagonis­mo de Maria Madalena, única mulher entre os apóstolos e tida como a favorita de Jesus, segundo os evangelhos apócrifos). Avatares como ele, Buda, Krishna, se comunicava­m por metáforas, assim como no livro de Clarissa Pinkola Estés.

Li “Mulheres que Correm com os Lobos” ao redor de 2007, na época em que estudava na USP e fazia algumas aulas no curso de antropolog­ia. Plantou em mim uma semente poderosa.

Pouco tempo depois, já repercutiu em um show que fiz dirigida por Ney Matogrosso, em que havia imagens fortes da perspectiv­a feminina. Por exemplo, eu usava um vestido com fendas laterais e em determinad­o momento, sentava numa cadeira de frente para o público e com as pernas abertas, de modo a parecer que estava nua, o que mexia muito com o público e comigo.

A sexualidad­e feminina, que é tocada profundame­nte pelo livro, é um tabu. Quanto mais nos conectamos a nossos instintos, mais ela aflora e se rebela, já que vivemos oprimidas em uma cultura machista e falocêntri­ca. Existe uma cartilha do que é aceito no sexo da mulher, e estamos no ápice de um momento de libertação disso, da compreensã­o de que nosso prazer é tão importante quanto o do homem.

Meu trabalho é muito pautado por essa primavera feminista que vivemos de uns anos para cá. O feminismo existe há séculos, mas agora vemos uma revolução ainda maior. Já no meu primeiro disco eu falava sobre arquétipos femininos, e em todos os álbuns vim procurando discutir isso, mas tudo culmina neste último, “Todxs”, que aborda não só a liberdade da mulher mas outras pautas importante­s de minorias e de ativismo político.

Cantar para mim é um ato totalmente visceral, existencia­l, úterovagin­al. Se eu tivesse que cantar de forma apolínea, não teria me transforma­do em cantora —foi um terreno onde descobri que poderia ser muito livre. O palco é um lugar em que posso viver a minha essência e verdade absolutas, é um local de transcendê­ncia.

Então aquele livro foi seminal para tudo o que desenvolvi como artista nos dez anos seguintes. Depois vieram outras obras, de Angela Davis, bell hooks, Djamila Ribeiro —aliás, é importante falar sobre o epistemicí­dio das intelectua­is negras, mas felizmente está acontecend­o uma revolução nesse lugar.

“Mulheres que Correm com os Lobos” é uma espécie de pedra filosofal desse movimento todo. Há ecos dele em tudo o que tenho feito, não só na música, mas como ser humano, como cidadã e como bruxa, loba, sagrada, profana, puta, santa, mulher.

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Lucas Seixas/Folhapress A cantora Ana Cañas na varanda da Casa de Francisca, em São Paulo
 ??  ?? Mulheres que Correm com os Lobos Clarissa Pinkola Estés. Trad. Waldéa Barcellos. Ed. Rocco. R$ 69,90 (575 págs.)
Mulheres que Correm com os Lobos Clarissa Pinkola Estés. Trad. Waldéa Barcellos. Ed. Rocco. R$ 69,90 (575 págs.)

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