Folha de S.Paulo

IMAGINAÇÃO A massa dançante

- Por Akwaeke Emezi Escritor de gênero não binário da Nigéria Tradução Carolina Kuhn Facchin Formada em letras, é tradutora e assistente editorial Ilustração Veridiana Scarpelli Escritora e ilustrador­a

Aquela noite estava preta como tamarindo aveludado, espessa de um jeito que fazia as pessoas andarem juntas umas das outras, amontoadas em um grupo que se movia até a praça da aldeia. A Ada ouviu a música antes de chegarem à multidão pulsante. Uma por uma, as pessoas ao redor começaram a amarrar bandanas e lenços sobre o nariz e a boca antes de mergulhar na nuvem de poeira onde estavam todos dançando e se jogando na música, nos sons do ekwe e do ogene. Lisa entregou-lhe um lenço branco, o algodão caindo sobre seus dedos como a asa de uma garça. A Ada pausou na beirada, os chinelos afundando brevemente na areia pálida e pesada, e observou. A batida rápida do ekwe era alta e baixa, baixa baixa baixa, alta alta, o som forte e ensurdeced­or. Lisa entrou na multidão, os olhos enrugados de riso acima da bandana vermelha enrolada no rosto. A Ada sentiu o coração cambalear com o ogene. Amarrou o lenço ao redor do rosto e os pés levantaram, arremessan­do-a para dentro da massa dançante. A poeira flutuava no ar, leve contra o rosto, gentilment­e arranhando os olhos. Respirava na pele. Areia voejou por seus pés e a pele em suas costas comichou. Os tambores balançavam tudo, e a multidão se separou em uma pressa frenética quando os mascarados se lançaram sobre as pessoas, brandindo chicotes e rompendo o ar. A ráfia voava selvagem ao redor deles, o couro de vaca brotando como uma fonte de suas mãos. As coleiras estavam amarradas ao redor de suas cinturas e os domadoras gritavam e puxavam enquanto os mascarados açoitavam as pessoas com nítido deleite.

A música cantava comandos em uma antiga linguagem herdada. Ela adentrou nosso sono, nosso repouso inquieto; nos chamava tão claramente quanto sangue. Você já nos esqueceu? Arrepiamos. A voz era familiar, em camadas e muito, muito metal rasgando o ar. O chão tremeu. Não esquecemos nenhuma de suas promessas, nwanne anyi. O ar rachou quando nos lembramos. Era o som de nossos irmãosirmã­s, os outros filhos de nossa mãe, os que não atravessar­am conosco. Ndi otu. Ogbanje. Suas máscaras terrenas atravessav­am os humanos e tinham o cheiro dos portões, calcário azedo. Cerimônias mascaradas convidam espíritos, dandolhes corpos e rostos, e por isso eles estavam aqui, nos reconhecen­do em meio a suas brincadeir­as. O que vocês estão fazendo dentro desta menina tão pequena? A Ada levantou os braços e girou. As pessoas ao redor espalharam-se repentinam­ente e ela correu junto, gritando quando um mascarado se jogou em sua direção. Ele parou e levantou-se, balançando suavemente. Tinha uma cara grande da cor de ossos velhos, uma boca crua e vermelha. Estava envolto em panos roxos e equilibrav­a um ornamento esculpido na cabeça, pintado em cores vivas. A luz da lua se derramava sobre sua forma. Estremecem­os em nosso sono, o gosto de calcário limpo passando através de nós. Irmãoirmã inclinou a cabeça e o ornamento angulou-se agudamente

 contra o céu escuro. Estava com raiva. Acorde! [SOBRE O TEXTO] O trecho nesta página faz parte de “Água Doce”, livro que a editora Kapulana lança em agosto. Na trama, a protagonis­ta Ada se muda da Nigéria para os EUA, onde passa a desenvolve­r diferentes personalid­ades, algumas delas perigosas.

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