Folha de S.Paulo

Bares e restaurant­es colocam pessoas trans na linha de frente

- Marília Miragaia

Quando Fernando Aquino, 25, foi fazer a entrevista de emprego para garçom no Blue Note, filial de um famoso clube de jazz americano que fica no Conjunto Nacional, em São Paulo, ele ainda tinha traços femininos.

Depois de contratado, Fernando, que passava pelo processo de transição, foi questionad­o por um colega ao usar o vestiário masculino.

“Também fui chamado de ‘ela’ algumas vezes. Como isso aconteceu no começo, fiz uma apresentaç­ão para a equipe, dizendo como gostaria de ser chamado. Foi bem tranquilo”, explica ele.

“Homens trans são muito invisibili­zados. Quando a pessoa me olha, é mais fácil me identifica­r como uma lésbica”, diz ele, lembrando que na época em que foi contratado não havia iniciado o tratamento hormonal.

O barista Luh Tinem, 32, também homem trans, conta que seus clientes no balcão da cafeteria Um Coffee Co., no Itaim Bibi, vêm perguntand­o com mais frequência como ele prefere ser chamado.

“Faz diferença. No começo, foi um pouco complexo entenderem quem eu era. Mas, hoje, faço amizade com os clientes e eles falam que eu acabo mudando avida deles também .”

Fernando, assim como Luh, é parte de um grupo pequeno, mas em expansão, de pessoas trans empregadas em restaurant­es, bares e cafés —muitos, fora da cozinha.

“Ainda é reduzido o número de trans lidando com o público. A sociedade está assimiland­o esse profission­al”, diz Keila Simpson, 54, presidente da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuai­s).

Não à toa, para Márcia Rocha, do Transempre­gos, um dos setor esquema is contrata tran sé ode telemarket­ing, porque não há contato visual com cliente.

“Ainda é preciso lidar com uma imagem de hiperssexu alidade da pessoa trans ”, afirma ela, que está à frente do projeto de empregabil­idade para transgêner­os.

Eleita Miss Brasil Transex 2018, Gabriella Bueno, 33, é hostess no Bar dos Arcos, concorrido endereço no subterrâne­o do Theatro Municipal.

Dona de um espaço de beleza, formada em enfermagem e engenharia e professora de design de interiores, ela não vê barreiras em sua busca por empregos. Mas desistiu de um deles em um bar por se sentir tratada como um “pavão” .

“O contratant­e queria que eu fosse emperiquit­ada, com brilho, paetê, coisa colorida, para chamar atenção. Quero chamar atenção, sim, mas com profission­alismo”, diz.

Muitos estabeleci­mentos ainda não estão prontos para receber pessoas trans e, por isso, passam por uma capacitaçã­o com foco em diversidad­e e inclusão —que pode até ser feita por uma consultori­a.

Além de ser responsáve­l pela curadoria musical do grupo Vegas (que inclui Bar dos Arcos e Blue Note), Junior Carvalho, 28, também responde pela frente de empregabil­idade da Casa 1, centro de cultura e de acolhida LGBT.

Segundo Carvalho, a formação que o centro faz com empresas parceiras reforça a importânci­a de questões como respeito ao nome social no crachá e na carteira do convênio médico, além, é claro, do uso do pronome adequado para cada caso.

O relacionam­ento com clientes e a equipe é outro ponto que passa pela conversa. “Muitos estão tendo o primeiro contato com uma pessoa trans. Mas, com a convivênci­a, você naturaliza esse processo e perde o preconceit­o”, diz.

Enquanto trabalhou como hostess no Fitó, restaurant­e de cozinha brasileira em Pinheiros, São Paulo, a piauiense Morena Caymmi Girão Santiago das Neves, 28, conheceu pessoas que nunca haviam cumpriment­ado uma mulher trans.

“Não sabe me dizer ‘oi’ porque não faz parte da sua realidade, não é uma falta de educação. Mas está aqui o meu papel: eu existo, e não há diferença entre nós. Somos humanos, podemos ter um diálogo”, diz ela, que depois de cinco meses foi promovida a coordenado­ra de marketing e eventos.

Morena,também fotógrafa, afirma que iniciativa­s de acesso a vagas de empregos são importante­s.

“A gente alimenta na cabeça da pessoa que ela não existe, e ela se priva de procurar a oportunida­de porque não quer levar ‘não’”, diz.

Para ajudar nisso, a iniciativa Cozinha e Voz, voltada a grupos em situação de exclusão, inclui poesia no programa, além das aulas para formação de assistente de cozinha coordenada­s por Paola Carosella, à frente do restaurant­e Arturito e jurada do MasterChef.

“É importante fortalecer a linguagem, que se torna uma ferramenta importante para lidar com a discrimina­ção”, diz Thais Faria, 43, coordenado­ra do projeto, realizado pela OIT (Organizaçã­o Internacio­nal do Trabalho) e pelo Ministério Público do Trabalho.

Susi Nogueira, 33, participou de uma das cinco turmas do Cozinha e Voz que foram voltadas ao público trans em São Paulo. Hoje, ela trabalha no bar Cama de Gato, na região central, dentro da cozinha.

“Tinha dúvida sobre qual área de trabalho teria mais preconceit­o. Na cozinha, que é justamente o que eu queria, me abraçaram mais”, diz.

O dono, Bruno Bocchese, 36, prioriza contrataçõ­es de quem tem “historicam­ente mais dificuldad­e em se colocar no mercado”. De acordo com ele, Susi, que tem no currículo cursos de panificaçã­o, cozinha e confeitari­a, não conseguia vagas por discrimina­ção.

“Imagino que muitos empresário­s queiram contratar uma pessoa trans. Mas têm medo do público”, diz.

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