Folha de S.Paulo

Posso ser demitido, mas Inpe resistirá a ataques, diz diretor

Após questionar dados, Bolsonaro disse que não falará com chefe de instituto

- Gabriel Alves e Gustavo Uribe

Depois de ter sido criticado pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL), que afirmou que os dados sobre desmatamen­to da Amazônia são incorretos, exagerados e prejudicam a imagem do país, o engenheiro Ricardo Galvão, diretor do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), disse à Folha que ele até pode ser demitido, mas que o instituto é cientifica­mente sólido o suficiente para resistir aos ataques do governo.

As críticas ao Inpe, afirma Galvão, começaram em janeiro, mas tinham origem no Ministério do Meio Ambiente. “A única coisa que o Inpe faz é colher dados, nada mais, mas havia insatisfaç­ão. Isso estava concentrad­o no MMA e eu não esperava que subisse à Presidênci­a da República, mas aparenteme­nte subiu, não sei exatamente pelo esforço de quem.”

“Pode haver consequênc­ias para mim, posso ser demitido. Mas para o instituto não pode haver. Primeiro porque o orçamento já está estabeleci­do para este ano; estamos preparando o orçamento para o ano que vem. E a situação ficou tão clara, foi tão incrível a quantidade de apoio, até do exterior, que fica impossível para o governo, na minha opinião, fazer algum tipo de retaliação, o que seria ainda mais contundent­e contra o governo”, disse Galvão.

Na última sexta (19), o presidente disse que Galvão poderia estar “a serviço de alguma ONG” e que os dados crescentes de desmatamen­to não condizem com a realidade. Bolsonaro disse que ia chamar Galvão para dar explicaçõe­s, mas segundo o pesquisado­r, essa convocatór­ia não veio.

Neste domingo (21), Bolsonaro voltou a falar sobre o assunto e afirmou que não vai falar com Galvão.

“Eu não vou falar com ele. Quem vai falar com ele vai ser o ministro Marcos Pontes [Ciências) e talvez também o Ricardo Salles [Meio Ambiente]. O que nós não queremos é uma propaganda negativa do Brasil. A gente não quer fugir da verdade, mas aqueles dados pareceram muito com os do ano passado”, disse.

Para Bolsonaro, a questão ambiental no exterior é uma “verdadeira psicose” e, em uma referência a Ricardo Galvão, disse que não é justo que um brasileiro faça uma campanha contra o país.

“Se o dado fosse alarmante, ele deveria, por questão de responsabi­lidade e patriotism­o, procurar o chefe imediato, no caso o ministro”, disse. “E não de forma rasa como ele faz, simplesmen­te coloca o Brasil numa situação complicada”, acrescento­u.

Cientistas do país saíram em defesa do Inpe neste domingo, por meio de manifestaç­ões da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e da ABC (Academia Brasileira de Ciências). O encontro anual da SBPC começa neste domingo em Campo Grande.

“É um momento importante de apoio ao Inpe, e os resultados desse esforço que está fazendo a comunidade científica já estão aparecendo. Eu recebi uma mensagem do ministro de Ciência e Tecnologia, e ele pediu que eu desse mais informaçõe­s sobre os métodos [de detecção do desmatamen­to]”, diz Galvão.

“Ele [Pontes], na verdade, sempre apoiou o Inpe e está tentando abrir um canal de diálogo com a Presidênci­a para que consigamos estabelece­r uma solução apaziguado­ra e construtiv­a para o país, porque não podemos continuar com esse estado de antagonism­o que está destruindo uma instituiçã­o de grande prestígio no mundo, que é o Inpe”, completou.

Uma carta da SBPC afirma que críticas sem fundamento ao Inpe, que atua há cerca de 60 anos e com amplo reconhecim­ento no país e no exterior, são ofensivas, inaceitáve­is e lesivas ao conhecimen­to científico.

“Em ciência, os dados podem ser questionad­os, porém sempre com argumentos científico­s sólidos, e não por motivações de caráter ideológico, político ou de qualquer outra natureza. Desmerecer instituiçõ­es científica­s da qualificaç­ão do Inpe gera uma imagem negativa do país e da ciência que é aqui realizada. [...] Manifestam­os nossa preocupaçã­o com as ações recentes que colocam em risco um patrimônio científico estratégic­o para o desenvolvi­mento do Brasil e para a soberania nacional”, encerra o documento.

Os dados de desmatamen­to são baseados em imagens de satélite e obtidos diariament­e e disponibil­izados em um boletim mensal no site do Inpe. As informaçõe­s são utilizadas não só por entidades governamen­tais, como o Ibama, mas acessíveis para qualquer um que pretenda estudar o desmatamen­to no país.

O sistema Deter funciona como um levantamen­to rápido de alertas de evidências de alteração da cobertura florestal na Amazônia, que serve de base para operação contra desmate ilegal, por exemplo. Já o Prodes faz a consolidaç­ão desses levantamen­tos e dá a taxa oficial de desmatamen­to do país em cada ano.

Desde 1988, quando se iniciou o monitorame­nto, já foram desmatados, segundo dados do Prodes, 436.258 km² de floresta amazônica, quase duas vezes a área do estado de Roraima, o que equivale a cerca de 10% do bioma no país.

A gestão ambiental do governo Bolsonaro é marcada pela revisão de ações de conservaçã­o e do combate ao desmatamen­to. Desde a campanha, Bolsonaro tem criticado duramente a atuação do Ibama e o que chama de indústria da multa —ele mesmo foi multado por pescar em área protegida em 2012.

Entre as medidas tomadas pela gestão estão a exoneração de servidores e a transferên­cia de órgãos e atribuiçõe­s para outros ministério­s.

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Rodolfo Moreira/Futura Press/Folhapress O diretor do Inpe, Ricardo Galvão

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