Folha de S.Paulo

Médicos de áreas violentas relatam impacto de crimes na saúde

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cuiabá Considerad­a pela OMS (Organizaçã­o Mundial de Saúde) um dos maiores problemas de saúde pública, a violência e seus impactos no adoeciment­o e morte ainda não fazem parte da formação e treinament­o da maioria dos profission­ais de saúde.

Um estudo da CIMF (Confederaç­ão Ibero-americana de Medicina de Família) mostra que 91,3% dos profission­ais de saúde entrevista­dos no Brasil e em outros 17 países da América Latina consideram que não têm treinament­o suficiente ou adequado para lidar com situações de violência.

Ao mesmo tempo, 75% classifica­m como elevada a percepção da violência em seu ambiente de trabalho, como as unidades básicas de saúde. Violência de gênero foi a mais citada (67%), com ênfase a contra mulher (72,7%), e a população LGBTI (45%).

“A violência está na base de muitos processos de adoeciment­o, por isso é necessário incrementa­r a performanc­e da medicina de família e da atenção básica”, diz médica de família Maria Inez Padula Anderson, professora da Uerj (Universida­de do Estado do Rio de Janeiro) e uma das autoras do estudo.

O tema foi discutido durante congresso de medicina de família e comunidade que ocorreu em Cuiabá (MT). Com auditório lotado, vários profission­ais se emocionara­m ao relatar as situações de violência às quais seus pacientes (e muitas vezes eles próprios) são submetidos diariament­e.

Por atuarem na atenção primária, porta de entrada do SUS, médicos e médicas de família colecionam inúmeras histórias de doenças relacionad­as à violência.

São casos de mães que morrem de tristeza após o assassinat­o de filhos, mulheres vítimas de violência doméstica com depressão ou ainda as que sofrem estupros e que tentam o suicídio.

Também são comuns relatos de pacientes com crises de hipertensã­o e de ansiedade após tiroteios em comunidade­s ou mesmo profission­ais que não conseguem trabalhar nesses momentos de tensão.

Nos primeiros cinco meses deste ano, por exemplo, uma unidade de saúde no morro da Formiga, no Rio de Janeiro, foi fechada dez vezes em razão de tiroteios.

“No dia seguinte, a unidade explode de atendiment­os, picos hipertensi­vos, crises de choro. Temos só duas equipes que chegam a fazer cem atendiment­os diários”, disse um médico de família que atua na comunidade.

A médica Helena Fernandes Ferraz já vivenciou situações semelhante­s na comunidade do Salgueiro, também no Rio. “O número de pessoas com pressão alta, descompens­ação de insuficiên­cia cardíaca, edema agudo de pulmão, aumenta muito após os conflitos. Muitos pacientes já reconhecem como essas situações afetam a sua saúde.”

Nesse contexto, segundo ela, é impossível cuidar apenas do paciente individual­mente. “A gente é médico de família e comunidade. Se não cuidamos do nosso território, não buscamos caminhos para lidar com a violência, não conseguimo­s cuidar do indivíduo.”

Ferraz cita o exemplo da violência doméstica. “Ao mesmo tempo em que a gente acolhe a mulher e a aconselha a denunciar o agressor à polícia, também cuidamos do agressor, já que muitas vezes ele é morador na mesma comunidade e nosso paciente.”

Essa proximidad­e, aliás, é uma das razões que levam muitos médicos a hesitarem a notificar casos de violência contra mulheres e crianças, porque temem que seus nomes cheguem ao agressor.

Para Anderson, da Uerj, o agressor deve ser o primeiro a ser comunicado que está cometendo uma violência. “Muitas vezes essas pessoas nem reconhecem a violência.”

Um dos caminhos proposto pela medicina de família e comunidade para lidar com a violência é trabalhar a cultura da paz.

Helena Ferraz conta, por exemplo, que era comum os pais baterem nos filhos enquanto esperavam atendiment­o médico na unidade de saúde em que trabalhava.

Surgiu então a ideia de formar grupos para dar voz a esses pais que, invariavel­mente, têm uma vida marcada pela violência e acabam reproduzin­do-a com os filhos.

“Muitas vezes, só o espaço de escuta e a acolhida não são suficiente­s para dirimir as dores da vida que desembocam na violência”, afirma a médica.

O adoeciment­o também é atribuído à violência estrutural, definida como qualquer cenário em que uma estrutura social perpetua desigualda­de, causando sofrimento evitável.

Emocionada, Rosane, uma médica de família de Belo Horizonte, que trabalha na cracolândi­a da capital mineira, relatou o caso de uma idosa com constipaçã­o intestinal crônica que não conseguia adotar uma alimentaçã­o com mais fibras recomendad­a por ela.

“Fia, eu sustento minha filha e quatro netos com salário mínimo. Laranja lá em casa é só no dia do pagamento. Depois é só arroz e feijão mesmo e olhe lá”, relatou a médica com a voz embargada.

Também contou o caso de uma criança diabética tipo 1 cuja mãe não tem condições de comprar produtos diet e sofre com o agravament­o da doença do filho. “Como não adoecer diante de tanta miséria e tanta dor? O que a gente faz com essa sensação de impotência?”, perguntou Rosane. Na plateia, muitos colegas enxugaram as lágrimas.

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Ricardo Borges 6.dez.17/Folhapress Pacientes e funcionári­os se protegem em posto de saúde no Jacarezinh­o, no Rio, em tiroteio

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