Escritora japonesa reinventa Kafka ao transitar entre o real e o absurdo
Yoko Tawada faz do antropocentrismo uma intrigante via de acesso à animalidade que nos habita
LIVRO Memórias de um Urso-Polar ***** Autora: Yoko Tawada. Tradução: Lúcia Collischonn de Abreu e Gerson Roberto Neumann. Editora: Todavia. R$ 64,90 (272 págs.)
Até que ponto uma treinadora de circo é capaz de trespassar os limites de sua própria espécie para habitar o corpo do animal que ela adestra e vivenciar uma outra subjetividade que não a humana?
Em que medida uma ursa polar, em intrínseca relação com os humanos, pode escrever um relato pessoal sobre sua vivência com eles e ter um ponto de vista sobre o mundo e a humanidade?
O que os animais aprisionados em circos e zoológicos podem nos dizer sobre as relações de controle que constituem nossa sociedade?
Com seu olhar multifacetado de escritora japonesa radicada na Alemanha, que escreve em duas línguas (às vezes simultaneamente) e cultiva uma forte ligação com a literatura russa, Yoko Tawada, em seu magnífico “Memórias de um Urso-Polar”, não responde necessariamente a essas questões, embora nos conte muito mais do que sabe sobre elas, ao desdobrá-las em outras não menos instigantes e perturbadoras.
Seu ponto de partida é a história real do urso polar Knut, que, rejeitado pela mãe ao nascer, é criado por humanos no zoológicode Berlim, tornandose uma celebridade mundial.
Antes, porém, de se deter nessa história comovente, a escritora traz à tona, nas duas primeiras partes do livro, as (auto)biografias da avó e da mãe do urso abandonado, que também viveram em espaços de confinamento e mantiveram complexas relações com a nossa e outras espécies animais.
Para tanto, a autora entrelaça engenhosamente diferentes vozes humanas e não humanas, criando um jogo entre primeira e terceira pessoas narrativas, de modo a “traduzir” em palavras o que imagina se passar na esfera íntima dos animais, ao mesmo tempo em que reavalia os conceitos cristalizados de humanidade e de humanismo.
Como se não bastasse, ainda revisita, por vias irônicas e com certo humor desconcertante, alguns momentos emblemáticos da história política mundial, com ênfase nos conflitos e consequências da Guerra Fria, nas práticas institucionalizadas de controle social, nas contradições dos movimentos que defendem os direitos humanos e os dos animais, bem como nos efeitos perniciosos do aquecimento climático para o futuro do planeta.
Ao transitar entre o real e o absurdo para abordar os contágios recíprocos entre distintos mundos, Tawada reinventa Kafka com a legitimidade de uma escritora que escreve numa língua contaminada por outra e, por isso, sustenta sua própria estranheza.
Como o escritor tcheco-alemão, mas sob um outro enfoque, retoma as antigas fábulas a partir de uma nova consciência dos limites/liames entre as espécies e faz do antropocentrismo uma intrigante via de acesso à animalidade que nos habita.
Assim, “Memórias de um Urso-Polar” , belamente traduzido ao português, vem desestabilizar a própria noção de fronteira, sem deixar também de refletir sobre os desafios de quem se entrega ao ofício de escrever no mundo contemporâneo.
Não à toa, circos, zoológicos, palcos, congressos acadêmicos e editoras também se confundem no livro. Ursos e escritores, também. Afinal, como diz Tawada, “o escrever não se diferencia tanto da hibernação”. Imperdível.