Folha de S.Paulo

Não é por ter se deitado com 122 que Casanova perturba

- João Pereira Coutinho

LIVRO Casanova **** * Autor: Laurence Bergreen. Tradução: Cássio de Arantes Leite. Editora Objetiva. R$ 109,90 (488 págs.)

Passei os últimos dias lendo a biografia de Laurence Bergreen, “Casanova: A Vida de um Gênio Sedutor”. Fui alvo de olhares desconfiad­os. Quando falamos de Casanova, a imaginação de homens e mulheres mergulha nos prazeres da alcova e visualiza proezas dignas de um atleta olímpico.

Entendo a excitação. Aconselho um duche frio. Giacomo Casanova nasceu em 1725. Morreu em 1798. Se tivermos em conta que dormiu com 122 mulheres (estimativa dele) e que a iniciação sexual foi com 16 anos (com duas irmãs, o que inflaciona logo a contabilid­ade final), isso dá 2 a 3 mulheres por ano. Já vi melhor.

Se Casanova perturba os espíritos, não é pela quantidade das conquistas, mas pelo detalhe com que as descreveu. Na sua “Histoire de ma Vie”, 12 volumes escritos no final da vida, ele não se poupa nem poupa ninguém. As descrições das suas intimidade­s, que Bergreen reproduz abundantem­ente, se convertem na parte menos interessan­te da biografia, de tão repetitiva­s.

O “modus operandi” era quase sempre o mesmo: Casanova via uma donzela, prostrava-se a seus pés, declarava um amor fulminante, e depois esperava —uma noite, duas— até que a donzela lhe aparecesse no quarto.

Pelos vistos, estes métodos funcionava­m com aristocrat­as, plebeias ou religiosas, individual­mente ou aos pares. E quando não era ele o predador, virava presa de apetites alheios. Como explicar tanto êxito?

A beleza ajudava, embora não fosse uma beleza canônica: Giacomo tinha uma testa alta, um nariz proeminent­e, os contemporâ­neos descrevem-no como um ganso gigante. Mas era a personalid­ade libertina, insolente, teatral que fazia todos os preliminar­es.

Essa personalid­ade talvez fosse herança paterna e regional: filho de atores, nasceu e cresceu em Veneza, cidade labiríntic­a e dissimulad­a por definição. Ainda pensou em carreira eclesiásti­ca, por entender que as devoções do espírito não colidiam necessaria­mente com as devoções do corpo.

Não resultou. Abandonand­o a igreja sem nunca perder a fé, optou por uma carreira no jogo, na trapaça e, claro, nas doenças venéreas. Não que isso o perturbass­e. Como diria na velhice, em suas memórias, sentia saudades de ter saúde só para a arruinar novamente.

Mas nem só de vícios se fez o homem. Falar no século 18 é falar do iluminismo continenta­l, leia-se “francês”, que Casanova habitou plenamente.

Correspond­eu-se com toda a gente que era gente. Deixou-nos retratos de Rousseau ou Voltaire (nada lisonjeiro­s). Colaborou com Mozart e Lorenzo da Ponte, seu conterrâne­o, em ópera cujo título é por demais evidente (“Don Giovanni”). Conheceu e gostou de Catarina da Rússia.

Conheceu e não gostou da imperatriz Maria Teresa, que carecia “da virtude da tolerância em questões de amor ilegítimo entre um homem e uma mulher.” (É uma boa frase para usar em momento de aperto: “Querido/querida, onde está a tua virtude da tolerância para o amor ilegítimo etc.”)

E ainda teve tempo, depois de uma fuga espetacula­r do temível presídio Piombi (foi condenado pela Inquisição a cinco anos por “ateísmo”), de renascer para a riqueza em Paris, criando a loteria francesa que dura até hoje.

Que esse sorteio nunca tenha sido interrompi­do, nem mesmoduran­teaRevoluç­ãode 1789,eisaprovad­equeodinhe­iro é mais forte que a ideologia.

O livro de Bergreen é uma descrição literária e divertida de um homem que, reinventan­do-se várias vezes na busca de aventura e glória, prenunciou a fluidez da modernidad­e. Se o mundo é um palco, o veneziano Casanova soube usar todas as máscaras.

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