Folha de S.Paulo

Ninguém me ama, ninguém me quer

‘Caí no banheiro e me machuquei aqui’, diz uma bela voz de cantor de rádio

- Daniel Furlan Ator, comediante e roteirista, é um dos criadores da TV Quase, que exibe na internet o programa “Choque de Cultura” Cynthia Bonacossa

Meia-noite. Alguém bate com muita força na porta de casa. Abro com algum receio (mais conhecido como muito medo) e tenho que olhar para cima. Do alto de um corpo magro de quase dois metros, um senhor de idade diz com uma bela voz de cantor de rádio: “Caí no banheiro e machuquei aqui”.

Eu nunca tinha ouvido a voz do meu vizinho. Ele levanta a cabeça e do queixo um corte libera um rio de sangue. Partimos no meu carro pela madrugada até um hospital com nome de algum santo. Com o gesto universal, perguntam se ele bebeu. Acho que sim, mas gesticulo que não sei.

Com a sociabilid­ade de quem de fato tinha tomado um pouco mais, ele imediatame­nte se enturma entre os pacientes: feridos algemados a policiais, um corpo desacordad­o numa maca para quem ele tenta contar histórias desconexas e um senhor prestes a perder um dedo do pé devido a uma ferida muito antiga. Eu tento não olhar diretament­e para o dedo enegrecido pela falta de cuidados, mas não quero virar o rosto e ser indelicado. As horas passam, a fila anda e meu vizinho fica sem ter com quem conversar, não vendo mais sentido em estar no hospital.

Enquanto tento convencê-lo da importânci­a do exame, ele parte em direção ao estacionam­ento. Após alguma discussão, estamos no carro de volta para casa. Sou um fantoche em suas mãos. “Para aqui. Vou te pagar uma bebida.” “Não, obrigado. Quero ir pra casa.” “Eu te pago um jantar!” “São cinco da manhã .” “Você ém eu convidado !”

Sou seu prisioneir­o. Aceito na esperança de ir para casa. Entro no bar com o velho gigante fugitivo do hospital e sua camisa toda suja de sangue, quando um grupo de outros idosos embriagado­s se aproxima. Cantam armados com um violão: “Ninguém me ama, ninguém me quer. Ninguém me chama de meu amor”.

Ele se junta ao coro, sua voz de rádio ecoa mais bonita do que nunca: “A vida passa e eu sem ninguém. E quem me abraça não me quer bem”.

Só anos depois fui descobrir que música era essa. Ouvi todas até o fim e ainda demoraria até o amanhecer para conseguir ir para casa, mas pelo menos ele estava entregue. “Vim pela noite tão longa, de fracasso em fracasso. E hoje descrente de tudo, me resta o cansaço. Cansaço da vida, cansaço de mim. Velhice chegando e eu chegando ao fim. Ninguém me ama, ninguém me quer.”

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