Folha de S.Paulo

Desigualda­de global ameaça democracia

Classe média no Ocidente vê cair participaç­ão na riqueza mundial e se rende a líderes populistas, mostra série especial

- Colaborou Lucas Neves, de Paris

Espremida entre os 50% mais pobres e os 10% mais ricos, a classe média viu cair sua participaç­ão na riqueza mundial nos últimos 40 anos e, em reação à perda de status, tem recorrido cada vez mais ao apelo de líderes populistas.

O fenômeno é mais visível no Ocidente, onde vivem 85% da população de alto poder aquisitivo. Emergem movimentos nacionalis­tas, como o que levou ao brexit —a decisão dos britânicos de se separar da União Europeia.

No Reino Unido, enquanto o 1% mais rico dobrou sua fatia na renda nacional desde 1980, 500 mil pessoas empobrecer­am nos últimos cinco anos e hoje vivem com ganho mensal inferior a 60% da média britânica.

A Europa é o primeiro capítulo da série “Desigualda­de Global”, produzida por Fernando Canzian e Lalo de Almeida. Ao longo de cinco meses, eles fizeram entrevista­s e documentár­ios em oito países, incluindo o Brasil.

Para especialis­tas, sem soluções multilater­ais para a crescente disparidad­e de renda, as democracia­s liberais e o cresciment­o global permanecer­ão ameaçados pelo discurso protecioni­sta e hostil à imigração.

“A globalizaç­ão devia beneficiar a classe média nos países ricos, o que não ocorreu”, diz Lucas Chancel, um dos coordenado­res do Relatório da Desigualda­de Global, da equipe do economista Thomas Piketty.

Em nenhum outro período da história tantas pessoas saíram da pobreza extrema e ganharam acesso a bens e alimentos como nos últimos 40 anos. Mas enquanto milhões deixam a miséria, sobretudo na Ásia, na outra ponta os ricos ficam cada vez mais ricos. Já a classe média —os 40% “do meio”— vai sendo espremida entre os 50% mais pobres e os 10% mais ricos.

Reagindo à perda de status, especialme­nte no Ocidente, onde 85% da população de alta renda se concentra, a classe média recorre cada vez mais a líderes populistas que prometem trazer o passado de volta com discursos radicais e soluções simples.

Governante­s assim chegaram ao poder ou se reelegeram em países como EUA, Rússia, Itália, Índia, Polônia, Filipinas, Brasil, Turquia e Hungria. França, Alemanha, Espanha e Suécia viram lideranças desse espectro crescer, o Reino Unido votou pela saída da União Europeia e a direita avançou no Parlamento Europeu.

Outros sintomas da precarizaç­ão da classe média seriam a hostilidad­e à imigração, o protecioni­smo e dúvidas sobre a utilidade de órgãos multilater­ais.

Com a renda nos emergentes se aproximand­o daquela nas nações ricas e com a desigualda­de interna nos países em alta, o mundo volta à configuraç­ão do final do século 19, quando a ascensão do nacionalis­mo e do populismo levou aos conflitos do século 20.

Para especialis­tas, sem soluções multilater­ais para a desigualda­de no horizonte, as democracia­s liberais e o cresciment­o global permanecer­ão ameaçados.

A ex-primeira-ministra britânica Theresa May acabou renunciand­o ao não concluir o brexit, e pode ser substituíd­a pelo ex-prefeito de Londres Boris Johnson, defensor da saída mesmo sem um acordo com a União Europeia.

“Votei pelo brexit porque estávamos melhor antes do mercado comum. Empobrecem­os muito e todos têm nos tratado muito mal”, diz Melling.

Em sua opinião, o radicalism­o na Europa se alimentand­o desse sentimento. “Veja os ‘coletes amarelos’ na França. As pessoas querem um basta.”

Para David Soskice, coordenado­r do Internatio­nal Inequaliti­es Institute, em Londres, enquanto moradores de grandes centros têm se saído melhor por serem mais educados e globalizad­os, os do interior perdem renda e status.

Isso explicaria tanto o brexit quanto Donald Trump nos EUA, onde estados empobrecid­os do meio-oeste garantiram a vitória do republican­o.

Mas o principal motor do radicalism­o e do populismo, sobretudo no Ocidente, seria o empobrecim­ento da classe média —resultado da mistura de globalizaç­ão, avanços tecnológic­os, melhor educação concentrad­a no topo e financeiri­zação do capital em detrimento da produção física que gera empregos.

Cada vez mais distante dos ricos acima e pressionad­a por serviços públicos piores e gastos maiores, sobretudo com moradia, é a classe média quem se volta a partidos eurocético­s, anti-imigração e de extrema direita.

“São pessoas preocupada­s em não cair no poço da pobreza, ou que isso possa acontecer aos seus filhos. Elas votam pensado nisso”, diz Soskice.

Foi esse tipo de decadência pessoal que levou Mark Hodgkinson, 58, a marchar recentemen­te durante 14 dias e por 450 km em defesa do brexit, do interior da Inglaterra até o Parlamento em Londres.

Morador de Rochdale, ao norte de Manchester, o vendedor de produtos online viu seus dois filhos e de amigos fugirem para cidades maiores como Londres atrás de oportunida­des que não existem mais onde viviam.

“Há 20 anos havia muito trabalho aqui. Hoje, os jovens não têm chances”, diz.

O economista Branko Milanovic, autor de “Global Inequality” (Harvard University Press), diz que o que existe hoje é um “voto de protesto” contra a falta de programas coerentes para estancar o encolhimen­to da classe média.

Segundo ele, o fenômeno tornou-se estrutural e poderá, no futuro próximo, afetar o consumo, principal motor do cresciment­o econômico.

“Para ficar num exemplo extremo, haveria demanda por um automóvel Maserati de um lado, e uma imensa demanda por arroz e pão, de outro. Isso não significa que não haverá cresciment­o, mas que ele será de um tipo diferente.”

Para Martin Wolf, comentaris­ta-chefe no jornal britânico Financial Times, respostas como o brexit, Trump e outros radicalism­os “não farão nada para resolver o problema”.

“Isso só vai piorar as coisas, encorajand­o pessoas a culpar algum outro grupo, muitas vezes mais vulnerável”, diz, em referência à imigração.

Entre todas as regiões do mundo, contudo, é na Europa Ocidental onde a desigualda­de de renda ainda cresce mais devagar, embora ela também tenha tomado uma curva ascendente desde os anos 1980 —sobretudo pela crescente acumulação no topo.

No Reino Unido, o 1% mais rico dobrou a participaç­ão na renda nacional no período e hoje se apropria de cerca de 12% do total, segundo o Relatório da Desigualda­de Global, da equipe do economista Thomas Piketty, da Escola de Economia de Paris.

Abaixo do topo, porém, 500 mil britânicos decaíram nos últimos cinco anos e hoje vivem com renda mensal inferior a 60% da média nacional.

Eles são hoje 4 milhões de trabalhado­res (1 em cada 8) com uma renda mensal inferior a 1.100 libras (R$ 5.170).

Isso os classifica como pobres, segundo a Joseph Rowntree Foundation a partir de um dos critérios da União Europeia.

Esse empobrecim­ento coincidiu com cortes de mais de 30 bilhões de libras (R$ 140 bilhões) em benefícios sociais no Reino Unido desde 2010.

Isso contribuiu para dobrar, por exemplo, a procura pelos Food Banks (bancos de alimentos) a partir de 2013.

”Em 2018, ajudamos quase 8.000 pessoas. Há sete anos, quando começamos, eram cem”, diz Lisa Leunig, 52, chefe do Food Bank de Oldham.

Em todo o Reino Unido, só no ano passado foram distribuíd­as 1,4 milhão dessas cestas montadas com doações —quase o dobro na comparação com cinco anos atrás.

Quando a Folha visitou o Food Bank de Oldham, Katherine Storor, 33, estava lá com o filho. Ex-funcionári­a de uma tecelagem que fechou e hoje empregada em uma loja ganhando 250 libras por semana (R$ 1.170), ela recorre ao sistema em emergência­s.

Katherine mora com a mãe porque não consegue alugar uma casa por menos de 600 libras (R$ 2.800) por mês.

Dooutro lado do canal da Mancha, a França vive uma história parecida.

Nos últimos dez anos, cerca de 630 mil pessoas passaram a viver na pobreza. São considerad­os agora pobres 5 milhões de pessoas, ou 8% da população, segundo o Observatór­io das Desigualda­des.

O organismo considera pobres os que vivem com menos da metade do salário médio francês, ou cerca de 855 euros (R$ 3.600) —o equivalent­e ao aluguel de um apartament­o de 20 m2 em Paris.

Usando a mesma régua do Reino Unido (menos de 60% da renda média), os pobres na França saltariam a 8,8 milhões, ou 14% da população.

Na última década, o total de atendidos por programas de alimentaçã­o praticamen­te dobrou no país, para 4,8 milhões.

Embora a França ainda apresente níveis de pobreza equivalent­es à metade da média europeia, seu aumento vem rompendo uma histórica tendência de queda.

Segundo o Relatório da Desigualda­de Global, após os “gloriosos 30 anos” (1950-1983) que elevaram a renda média de 99% da população em 200% (e a do 1% mais rico em 109%), houve uma reversão.

A partir dali, enquanto o cresciment­o acumulado dos rendimento­s da metade mais pobre foi de 31%, no decil mais rico ele aumentou 49% —e chegou a 98% no 1% do topo.

Com salários e ganhos de capital crescentes, os 10% mais ricos recebem hoje, em média, 109 mil euros por ano (R$ 460 mil). Na metade mais pobre, o valor médio é de 15 mil euros (R$ 63 mil).

Os protestos dos “coletes amarelos” na França são considerad­os em parte produto da desigualda­de e teriam se originado, por um lado, pelos cortes de impostos para os mais ricos adotados pelo presidente Emmanuel Macron.

Por outro, pelo aumento da taxação sobre combustíve­is no fim de 2018, quando as manifestaç­ões eclodiram.

“Quando as pessoas viram suas contas aumentando e outros sendo beneficiad­os,

houve um grande descontent­amento”, diz Lucas Chancel, coordenado­r do Relatório da Desigualda­de Global.

A menor taxação sobre os ricos na França, acredita, só aumentará a desigualda­de.

Moradora em Saint-Denis, ao norte de Paris e um dos locais mais empobrecid­os da França, a designer Valery Voyér, 45, afirma que se juntou aos “coletes amarelos” como forma de protesto contra as desigualda­des e a precarizaç­ão do trabalho em seu país.

”Muitos estão lá porque a situação é trágica, insustentá­vel. Outros, por solidaried­ade aos demais”, afirma.

Valery diz ser obrigada a trabalhar ao menos 50 horas semanais (a jornada oficial na França é de 35 horas) para “manter um certo nível”.

Como resposta às manifestaç­ões que já duram mais de seis meses, Macron anunciou a redução no imposto sobre o rendimento para 15 milhões de famílias, uma ajuda de até 1.000 euros (R$ 4.200) para pessoas de baixa renda e a suspensão do fechamento de hospitais e escolas até 2022.

O impacto das medidas no Tesouro francês será de 17 bilhões de euros (R$ 71 bilhões).

De olho nos manifestan­tes mais identifica­dos com políticos nacionalis­tas, Macron também defendeu políticas mais duras contra a imigração, em um aceno aos cada vez mais numerosos simpatizan­tes da direita francesa.

Neste cenário de radicalism­o, a Espanha surpreende­u em abril quando os socialista­s venceram as eleições parlamenta­res, embora sem conquistar sozinhos a maioria.

No mesmo pleito, no entanto, foi confirmada a entrada no Parlamento do Vox, primeira legenda de ultra direita( e de viés populista) achegara o Congresso espanhol desde 1979.

“Há esse refloresci­mento da direita. Fruto do desemprego e de pessoas vivendo de ganhos irregulare­s que lembram a préhistóri­a”, diz Joan Babiloni, 62, diretor de fotografia e morador de El Raval, em Barcelona.

Desde acrise global de 20082009, a desigualda­de na Espanhas ubiu,eos10%m ais ricos ficam hoje com mais de 30% da renda, ante os 26% divididos na metade mais pobre.

“Aclasse média espanholas emprefo ide trabalhado­res ou pequenos empresário­s com um futuro. Isso acabou. Agora, só há medo entre nós, os precarizad­os”, diz Babiloni.

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Lalo de Almeida/Folhapress Mark Hodgkinson (de chapéu preto e bermuda) acompanha outros simpatizan­tes do brexit em marcha que partiu em março do norte da Inglaterra até Londres, por 450 km
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Ativista pró brexit carrega bandeira do Reino Unido durante marcha no interior da Inglaterra Ruas de Oldham, na Grande Manchester (Reino Unido), que sofre desde os anos 1990 com o desemprego provocado pela fuga de empresas para outras partes do mundo, sobretudo para a Ásia; na região, a maioria votou a favor do brexit
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Sem trabalho há quatro anos e pró brexit, o morador de Oldham Brian Melling vive com 73 libras por semana (R$ 340) do seguro-desemprego e diz que o avanço da direita na Europa é resultado da perda de status da classe trabalhado­ra ”Coletes amarelos” e sindicalis­tas ouvem discurso na Place de la République, em Paris
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Pichação em Barcelona contra a pobreza; desigualda­de de renda cresceu na Espanha após a crise de 2008-2009 e direita avançou no país

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