Presidente planeja retirar gestão de fundo da Ancine
Em tentativa de censurar o teor de filmes patrocinados pelo governo, Bolsonaro planeja transferir controle do dinheiro da Ancine para seus ministros e aplicar o que chama de filtro
Em tentativa de censura ao conteúdo da produção cinematográfica incentivada pelo governo, o presidente Jair Bolsonaro quer transferir a gestão do Fundo Setorial do Audiovisual da Ancine para a pasta da Cidadania.
O presidente Jair Bolsonaro quer mais controle sobre o poder financeiro da Ancine, agência que regula e fomenta o cinema nacional, e esboça uma estratégia para censurar o teor da produção cinematográfica incentivada pelo governo, o que ele chamou de filtro num de seus ataques recentes ao órgão.
Sua estratégia, já em discussão no Palácio do Planalto e no Ministério da Cidadania, é retirar das mãos da Ancine a gestão de seu mecanismo de fomento direto, o Fundo Setorial do Audiovisual, ou FSA, que tem R$ 724 milhões para gastar neste ano.
A mudança no órgão, segundo produtores e diretores, bate de frente com um momento de sucessos recentes do cinema nacional. Neste ano, filmes brasileiros foram representados e premiados em festivais internacionais importantes como o de Cannes, na França, o americano Sundance e a Berlinale, na capital alemã.
O plano desenhado até agora é passar a execução orçamentária e financeira do FSA, sob comando da Ancine, para a Secretaria Especial da Cultura, subordinada ao Ministério da Cidadania. Dessa forma, a Ancine deixaria de ser responsável pelo incentivo financeiro do mercado de cinema e televisão e se limitaria a um papel de regulação e supervisão.
Na semana passada, o presidente disse que, se não pudesse impor um filtro à Ancine, extinguiria ou privatizaria a agência. Bolsonaro reclamou publicamente do financiamento ao longa “Bruna Surfistinha”, de 2011. Segundo ele, a produção, que nunca viu, tinha “fins pornográficos”.
Ao defender a retirada da gestão dos recursos das mãos da Ancine, um assessor do Planalto alega, reservadamente, ser atípico que uma agência de regulação tenha sob seu poder um fundo de fomento.
A equipe de Bolsonaro trabalha nos bastidores para que a agência tenha uma função semelhante à de estruturas correlatas, como a Agência Nacional de Energia Elétrica, a Aneel. O processo de escolha das produções beneficiadas pelos recursos do fundo passaria então a ser centralizado na estrutura ministerial.
Essa mudança teria de ser feita por medida provisória ou projeto de lei. Se confirmada pelo Congresso, ela pode aumentar, na avaliação de produtores culturais, a ingerência do Poder Executivo na destinação de recursos para obras audiovisuais. O esforço de ingerência também passaria pela transferência dos diretores da agência reguladora para Brasília. Atualmente, eles despacham do Rio de Janeiro.
Marcelo Calero, membro da Comissão de Cultura na Câmara, diz que as medidas de Bolsonaro devem ser contestadas. “Estamos vendo o caminho melhor. Pode haver desde um decreto legislativo até medidas judiciais.”
A maior crítica do governo é que a Ancine teria sido aparelhada por gestões passadas alinhadas à esquerda, o que produtores negam. “Nunca houve uma ideologia da Ancine para você direcionar esse ou aquele trabalho de acordo com um tipo de mensagem”, diz o produtor Rodrigo Teixeira, que foi a Cannes com três filmes.
Texeira levou ao festival francês “The Lighthouse”, de Robert Eggers, “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, de Karim Aïnouz, e “Port Authority”, incursão nova-iorquina de Danielle Lessovitz.
Outra crítica é que, no início do ano, o Tribunal de Contas da União detectou irregularidades na metodologia de prestação de contas da agência.
O retorno dos investimentos nas produções nacionais é outro motivo de reclamação. Desde dezembro de 2007, quando foi regulamentado o FSA, só seis obras cinematográficas deram retorno acima do aplicado, segundo o mais recente relatório de gestão.
“De Pernas pro Ar” foi uma dessas produções. “As declarações do presidente apontam uma indesejável incompreensão sobre o setor”, diz Mariza Leão, produtora do filme. “Nenhum investimento do Fundo Setorial pode restringir obras pelo conteúdo. Seria censura, e a liberdade de expressão é assegurada pela Constituição.”
“Que se façam filmes como ‘O Jardim das Aflições’”, prossegue, citando documentário de Josias Teófilo sobre Olavo de Carvalho, guru de Bolsonaro, “ou sobre Marighella”. “A diversidade é inerente à liberdade de expressão. Depois o público decide o que quer ver.”
Rosana Alcântara, ex-diretora da Ancine, diz que a agência lança editais que são ligados a uma visão macro da política de financiamento, sem restrição ao conteúdo. “Nunca houve nada que tivesse um mínimo grau de intromissão na capacidade criativa daqueles que são os artistas e que têm por seu labor produzir o conteúdo. Não cabe filtro no estado democrático de direito.”
“Acho uma pena que os eleitores desse senhor não tenham aplicado filtro temático quando votaram nele. Por conta disso agora estão submetidos aos filtros tacanhos da direita miliciana carioca, a quem Bolsonaro representa”, diz o cineasta José Padilha.
O Palácio do Planalto chegou a cogitara extinção da Ancine. O presidente, no entanto, foi convencido de que a medida poderia ser criticada por afetara regulação do setor. Par ater um maior controle, umadas opções era transferira agência para a Secretaria de Comunicação Social, que ficas oba influência direta da Presidência, masa pastada Cidadania tem resistido.
Na mesma linha, o presidente assinou um decreto que transferiu da Cidadania para a Casa Civil o Conselho Superior de Cinema, responsável pela formulação da política nacional de audiovisual. Também houve redução da participação do setor e da sociedade civil no conselho, de nove membros para cinco.
“O Brasil é muito grande para termos mais políticos do que membros da indústria em qualquer conselho”, diz Marcelo Lima, idealizador e organizador do evento anual Expocine, um dos maiores encontros voltados à indústria de exibição no país.
Embora haja resistência de parcela expressiva da classe, não há unanimidade em relação aos planos do governo. Bruno Barreto, diretor de “Dona Flore Seus Dois Maridos ”, avaliou a aproximação da pasta como Planalto como positiva. “É um upgrade”, diz. “Não sei de detalhes, mas ele [Bolsonaro] deve estar interessado no cinema.”
De vez em quando, alguns leitores interessados em política me pedem conselhos bibliográficos. Eu dou. Eles reclamam. Sobretudo quando recomendo autores de esquerda que esteja a ler no momento (Agamben, David Graeber, o excelente Paulo Arantes etc.).
Nunca entendi o descaso. É mais proveitoso ler autores com os quais discordamos (grosso modo) do que gente que se limita a pregar aos convertidos.
Um dos melhores exemplos é Chantal Mouffe, a filósofa belga que tem pensado como ninguém os dilemas que a esquerda contemporânea enfrenta.
Na década de 1980, e perante a “ofensiva neoliberal” de Thatcher e Reagan, Mouffe criticava a (sua) esquerda pela visão essencialista de só considerar os trabalhadores como sujeitos oprimidos da história. Para a autora, existem vários tipo de dominação que merecem uma resposta progressista.
Sem o saber, Mouffe influenciou aquela parte da esquerda que encontrou na luta das minorias —sexuais, culturais, étnicas etc.— uma nova bandeira pós-marxista.
O problema, porém, é que Mouffe nunca defendeu que as classes trabalhadoras deveriam ser substituídas pelas minorias. Na estratégia de Mouffe, uma nova “hegemonia progressista” seria plural, feita de várias vozes, e não de uma tribalização selecionada.
Eis o programa que Mouffe relembra no seu mais recente ensaio, que obviamente recomendo: “Por um Populismo de Esquerda” (edição portuguesa pela Gradiva).
Otítuloéu machado .“Populismo ”épalavram aldi tapara muitos progressistas, compreensivelmente assustados pelos populistas de direi taque tomaram conta do palco.
Nã opara Mouffe. Mais: ela defende explicitam enteque a única for made derrotar o populismo de direi tapas sapo ruma alternativa populista de esquerda.
O momento histórico que vivemos assim o determina. Durante 30 anos, o que Mouffe entende por “hegemonia neoliberal” teve rédea solta. De tal forma que os tradicionais partidos socialistas se converteram à ortodoxia dos mercados, aceitando a sua trilogia sagrada —desregulação, privatização, austeridade. Bill Clinton ou Tony Blair, os papas da “terceira via”, foram os rostos dessa rendição.
Mas a crise financeira de 2008 abriu uma brecha na narrativa de sucesso neoliberal. A direita populista entendeu isso, conquistando o voto dos deserdados da globalização. A esquerda, obcecada com as minilutas das miniminorias, perdeu o trem da história.
É preciso recuperá-lo. Primeiro, replicando a dicotomia do populismo de direita: é mesmo “nós” contra “eles” —ou, melhor dizendo, o “povo” contra a “oligarquia” neoliberal. E que povo é esse?
Para Mouffe, é a reunião de todas as forças democráticas —trabalhadores, imigrantes, minorias etc.— que não se reveem no modelo neoliberal e na pós-democracia reinante.
Entendo o diagnóstico da autora. Parcialmente, concordo com ele. A globalização, como qualquer processo histórico revolucionário, provocou rupturas tecnológicas que atingiram duramente o “proletariado”.
Além disso, a pós-democracia, entendida como redução da soberania nacional e desvalorização dos parlamentos, é uma evidência na Europa. A União Europeia pode ter vários méritos, mas há uma sombra antidemocrática no funcionamento político da Europa que tem alimentado a abstenção e a revolta entre os eleitores. É preciso lembrar o brexit?
Acontece que a proposta de Mouffe tem várias contradições. A primeira delas é mais ou menos óbvia. Como conciliar na sua noção de “povo” interesses tão díspares?
Uma parte dos trabalhadores que hoje votam em Donald Trump ou Marine Le Pen o fazem, precisamente, contra as minorias que Mouffe pretende aglutinar. É um voto contra a imigração irrestrita, entendida também como ameaça econômica global.
Que tem o populismo de esquerda a dizer sobre esse assunto? Abram as fronteiras e tudo será perfeito?
Mas não só. Na narrativa de Mouffe, há duas datas que a autora ignora: o 11 de Setembro e a crise dos refugiados de 2015. Podemos dizer que a primeira data, pela reação militar que despertou a Ocidente, está diretamente relacionada com a segunda.
O populismo de direita é filho dessas duas datas e do sentimento de insegurança coletiva correspondente.
Que tem o populismo de esquerda a dizer sobre isso? O terrorismo é mera “islamofobia”?
Como sempre, Chantal Mouffe toca em temas essenciais, como o abandono do “proletariado” pela nova esquerda ou o momento pósdemocrático na Europa.
Mas desconfio que ainda não é dessa vez que o populismo de direita tem um rival à altura.