Folha de S.Paulo

A coragem de cumprir a Constituiç­ão

Todos os órgãos devem realizar suas competênci­as

- Antônio Carlos de Almeida Castro O Kakay, advogado criminal

O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquiet­a. O que ela quer da gente é coragem Guimarães Rosa

As instituiçõ­es brasileira­s têm se engajado nos últimos anos em um longo e virtuoso processo de republican­ização do sistema de justiça criminal. É preciso, entretanto, fugir à tentação de tentar resolver o problema de “impunidade” generaliza­ndo para todos o direito penal da ilegalidad­e e do desrespeit­o aos direitos fundamenta­is.

Como destacou o professor Ademar Borges em sua tese de doutorado, os avanços no combate à corrupção só constituir­ão verdadeira­s conquistas da nossa democracia se as investigaç­ões e os processos criminais estiverem estritamen­te submetidos à lei e à Constituiç­ão Federal.

Não vale, em nome de uma alegada efetivação do direito penal, combater o crime cometendo crime. Juiz não combate crime, juiz julga, de forma imparcial.

O Judiciário não é órgão de segurança pública. Cabe ao juiz o papel de julgar os casos criminais com imparciali­dade e respeito à Constituiç­ão. Já ao Supremo Tribunal Federal (STF) incumbe principalm­ente identifica­r e corrigir as violações à Constituiç­ão praticadas pelo sistema de justiça criminal.

Nesse campo, há problemas novos que devem ser enfrentado­s pelo STF, ainda que para isso sofra algum desgaste midiático. Juiz não pode julgar com os olhos na opinião pública e ouvindo vozes das ruas, pois a única voz a ser ouvida é a da Constituiç­ão.

Atualmente, alguns órgãos administra­tivos têm se especializ­ado na realização de investigaç­ões criminais, especialme­nte pela Receita Federal e pelo Conselho de Controle de Atividades Financeira­s (Coaf ).

Esses órgãos não possuem atribuição legal para conduzir investigaç­ões criminais. E seus servidores não são dotados das prerrogati­vas de independên­cia técnica e funcional necessária­s para garantir que as investigaç­ões criminais sejam pautadas pela impessoali­dade.

Todo o caminho da persecução criminal é regido pelo princípio da legalidade estrita. Essa é uma conquista civilizató­ria que garante a todo indivíduo que a sua liberdade só possa ser restringid­a por agentes públicos previa e legalmente investidos da competênci­a de conduzir investigaç­ões e processos criminais.

É nesse contexto que deve ser entendida a decisão do presidente do STF, ministro Dias Toffoli, que determinou a suspensão de investigaç­ões instaurada­s a partir do compartilh­amento com o Ministério Público de informaçõe­s —abarcadas pelo sigilo financeiro— obtidas por órgãos administra­tivos (Receita, Coaf e Bacen) sem autorizaçã­o judicial.

Há casos em que tais órgãos não têm se limitado a identifica­r titulares das operações bancárias e dos montantes globais movimentad­os, mas têm obtido, sem autorizaçã­o judicial, informaçõe­s acobertada­s por sigilo bancário que são posteriorm­ente incorporad­as às investigaç­ões criminais. Caso se aceite essa prática, esses órgãos se transforma­riam em departamen­tos de investigaç­ão criminal paralelos, mais poderosos que a polícia e o Ministério Público.

Todos os órgãos devem realizar suas competênci­as administra­tivas típicas e comunicar o Ministério Público em caso de suspeita de crime.

Daí em diante, a investigaç­ão criminal é conduzida pela polícia e, às vezes, pelo Ministério Público. Se as suspeitas da prática delitiva forem sérias, pede-se ao juiz a quebra do sigilo bancário. Somente o juiz pode autorizar a quebra do sigilo bancário.

A maior eficácia do direito penal não pode ser obtida com violação à lei e tampouco com práticas de investigaç­ão forjadas de modo a frustrar o controle judicial das restrições de direitos fundamenta­is dos investigad­os.

Enquanto o STF não dá a palavra final sobre o tema, o risco de utilização de provas ilícitas para restringir a liberdade de ir e vir de investigad­os e réus justifica a paralisaçã­o daquelas investigaç­ões. Afinal, em direito penal, a dúvida socorre o réu, seja ele quem for. Simples assim.

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Paulo Branco

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