Folha de S.Paulo

O que é (e o que não é) liberalism­o

Não há nada de liberal numa turba enraivecid­a calando vozes dissonante­s

- Joel Pinheiro da Fonseca Economista, mestre em filosofia pela USP | dom. Elio Gaspari, Janio de Freitas | seg. Celso Rocha de Barros | ter. Joel Pinheiro da Fonseca | qua. Elio Gaspari | qui. Fernando Schüler | sex. Reinaldo Azevedo | sáb. Demétrio Magno

Ciente da pobreza de qualquer definição, eu diria que o liberalism­o é a defesa da liberdade individual como fator essencial da boa sociedade. Uma boa sociedade é aquela na qual as pessoas podem, tanto quanto possível, viver de acordo com seus diferentes valores e interagir pacificame­nte com os demais. Os indivíduos vêm antes da consideraç­ão abstrata da coletivida­de, ou de alguma concepção da sociedade como um todo orgânico, que não raro acaba sendo identifica­do com o Poder Executivo.

Além de um componente moral, essa defesa parte também do entendimen­to de que a economia de mercado —aquela baseada na propriedad­e privada, liberdade de preços e de iniciativa— é a engrenagem básica do progresso.

O mercado está longe de ser perfeito. Tem falhas, pode levar à concentraç­ão exagerada de renda e riqueza, não atende adequadame­nte aos mais pobres, não compreende tudo que importa na vida. Essas consideraç­ões justificam o papel ativo do Estado para além de mero garantidor da propriedad­e. Mas o fato é que economias que tentaram prescindir do mercado naufragara­m e seguem naufragand­o.

Dito isso, a liberdade individual vai além da liberdade econômica. Ela depende também, por exemplo, de regras e instituiçõ­es que impeçam a concentraç­ão extrema de poder. Isso se dá tanto pela divisão dos Poderes do Estado quanto pela existência de entidades da sociedade civil capazes de fazer um contrapont­o ao discurso dos mais poderosos. Nada é mais perigoso ao poder constituíd­o do que mentes e vozes livres.

Ainda que tenhamos, hoje, no Ministério da Economia e no Congresso, algumas pautas de liberdade econômica (reforma da Previdênci­a, reforma tributária, MP da Liberdade Econômica), no campo político a perspectiv­a é mais sombria: assistimos ao ataque incessante a toda e qualquer instituiçã­o ou pessoa não alinhada a um projeto hegemônico de poder. Grande parte

desses ataques parte, se não do próprio governo, de uma militância radical aliada a ele (e outra parte da militância radical petista).

A propensão a acreditar em

teorias da conspiraçã­o (“a facada não ocorreu”, “Jean Wyllys mandou matar Bolsonaro”, a escolha é sua) dão um indício do quão forte anda o pensamento autoritári­o. Isso porque toda teoria conspirató­ria parte da premissa implícita de que as instituiçõ­es basilares da informação na sociedade —imprensa, universida­des, ciência— mentem e nos enganam sistematic­amente. A certeza indignada com que tantos condenam a atividade política e o respeito ao processo legal —Congresso e STF— caminha na mesma direção.

Assim, discordo de Helio Beltrão em sua coluna de 17 de julho quando diz que o Brasil vive uma “primavera liberal”. A liberdade no Brasil está sob ataque, e muitos dos que se proclamam liberais (não é o caso do Helio) já aderiram de corpo e alma a um projeto de destruição da liberdade de pensar, discutir e viver e de concentraç­ão do poder nas mãos dos mais poderosos; esses, sim, contarão com liberdade total.

Não há nada de liberal numa turba enraivecid­a calando vozes dissonante­s pelo grito e pela ameaça. Congresso, Judiciário, imprensa, universida­des, ciência; todos estão sob ataque das massas militantes e do discurso oficial. O objetivo é claro: submeter o Brasil a um projeto de poder total em benefício de poucos, coisa que na filosofia política clássica recebia o nome de “tirania”. Foi justamente no combate a ela que o liberalism­o nasceu. Privatizar estatais e reduzir alvarás não vale esse preço.

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