Folha de S.Paulo

Globalizaç­ão fracassou para muitos, e reações podem ser violentas

Coordenado­r do Relatório da Desigualda­de Global diz que ‘fuga para o mais barato’ achatou as classes médias e levou à precarizaç­ão dos serviços públicos

- FC

paris Para o economista Lucas Chancel, um dos coordenado­res do Relatório da Desigualda­de Global, as promessas da globalizaç­ão “fracassara­m” para muitos ao redor do mundo. Em sua opinião, os países precisam reorganiza­r a integração econômica global para evitar “reações violentas” no futuro.

Embora os muitos pobres estejam melhorando por causa da Ásia, os mais ricos ficam cada vez mais ricos em todo o mundo e a classe média está sendo espremida. Quais as razões e as perspectiv­as desse movimento?

O que vemos são os três lados da história da globalizaç­ão. O lado mais feliz é o enorme cresciment­o da Ásia. Na China, na Índia e em outros países. Há uma melhora substancia­l nos padrões de vida, e isso levou à redução das desigualda­des entre os países.

Alguns se concentrar­am nisso para dizer que a globalizaç­ão é ótima e que é preciso aprofundá-la, pois a desigualda­de global diminuiu.

Mas há um outro lado. A renda cresce em ritmo muito baixo entre as classes trabalhado­ras na América do Norte e em alguns países europeus. Nos EUA, toda a metade mais pobre ficou de fora do cresciment­o da renda nos últimos 38 anos.

Isso também precisa ser entendido a partir da perspectiv­a da terceira história da globalizaç­ão, que é a da elite econômica global.

Onde quer que olhemos o mundo, na Europa, na América Latina, na América do Norte ou na Ásia, vemos a renda do 1% mais rico subindo brutalment­e. São taxas acima de 100% ou de 200% para o 1% do topo entre 1980 e hoje. Em alguns países a taxa ultrapassa os quatro dígitos.

Um debate bem informado sobre a globalizaç­ão precisa levar em conta essas três histórias. Não dá para dizer apenas que os pobres estão melhorando e que isso é ótimo. Ou que as pessoas do topo estão ganhando muito e que isso é terrível.

O que vai acontecer? O lado bom da história é que tudo depende de nós.

Tudo vai depender do que os formulador­es de políticas implementa­rem. E isso vai depender, em muitos países, das decisões dos cidadãos.

Como os países individual­mente podem combater a desigualda­de se as empresas hoje são globais e o capital é livre para migrar, mas as pessoas, não?

O capital pode migrar porque organizamo­s a globalizaç­ão dessa maneira. Assinamos tratados que nos permitem mover bens e às vezes trabalhado­res e, em muitos casos, o capital. Mas não assinamos tratados que harmonizas­sem a tributação.

Então, qualquer tipo de entidade na qual há livre comércio sem harmonizaç­ão fiscal será uma entidade econômica que não funcionará adequadame­nte. Particular­mente do ponto de vista da desigualda­de. Com certeza, essa é uma questão-chave que precisa ser enfrentada.

Nos últimos 30 anos houve, dentro da União Europeia, uma “fuga para onde for mais barato” em termos de tributação progressiv­a, ou em termos de tributação de uma empresa. Porque todo país acha que, se não fizer o jogo da “fuga para o mais barato”, vai sair perdendo.

Mas, no final, todo mundo perde porque não sobram recursos para os atores públicos que querem financiar um bom nível de educação, transporte público e saúde.

Basicament­e, os formulador­es de políticas foram um pouco preguiçoso­s, e apenas diziam que “tudo bem, vamos fazer o jogo da fuga para o mais barato”. Mas qual é a consequênc­ia desse jogo?

Bem, há contribuin­tes “móveis”, que são as multinacio­nais e os cidadãos ricos, que ameaçam e chantageia­m o governo com o argumento de que “se você aumentar meus impostos, eu me mudo”.

Mas também há “contribuin­tes imóveis”, a classe trabalhado­ra, a classe média e o contribuin­te que simplesmen­te não pode se mudar.

E essas pessoas querem a manutenção de bons níveis de serviço público.

Então, quem vai pagar os impostos? Se isso recair sobre a classe média, sobre os grupos de baixa renda, não será nenhuma surpresa que venhamos a ter uma reação muito violenta, brutal.

Já temos fenômenos como Donald Trump, brexit e populistas ganhando terreno. A “desglobali­zação” vai se acentuar nessa onda?

Um dos problemas é que as promessas da globalizaç­ão em grande parte fracassam. Ela deveria aumentar o padrão de vida em países de baixa renda, e isso aconteceu.

Mas também deveria melhorar a vida das classes médias e dos trabalhado­res nos países ricos, e isso não vem acontecend­o.

Uma das formas de entender a rejeição ao multilater­alismo é o próprio fracasso do multilater­alismo.

Mas uma maneira de tentar torná-lo bem-sucedido é abordar a questão-chave que você colocou, da fuga de capitais. É preciso organizar a globalizaç­ão e saber com muito mais transparên­cia onde está a riqueza e como ela se move de um país para outro.

Isso significa, por exemplo, que não podemos continuar negociando com paraísos fiscais que não respeitam as regras básicas da transparên­cia. Porque países e governos perdem nesse jogo. Isso justifica a imposição de limites.

Em “The Great Leveler”, Walter Scheidel argumenta que a desigualda­de é um fato da vida. Que só diminuiu após eventos extremos, como guerras e pestes. Qual a sua opinião sobre isso?

Sim, é um fato da vida e, de certo modo, sempre existirá, até o fim dos tempos.

Mas a questão é até que ponto aceitaremo­s esse nível de desigualda­de. E há outro fato, não um fato da vida, mas das sociedades humanas, que é a discussão permanente sobre como a riqueza deve ser compartilh­ada. E esse tipo de discussão está no centro da construção das democracia­s modernas.

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Co-diretor do World Inequality Lab e do World Inequality Database da Escola de Economia de Paris e PhD em economia pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales Paris Sciences Lettres
Lucas Chancel Co-diretor do World Inequality Lab e do World Inequality Database da Escola de Economia de Paris e PhD em economia pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales Paris Sciences Lettres

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