Folha de S.Paulo

Após agonia, May se prepara para deixar o cargo marcada por fracasso

Novo premiê receberá partido e país fraturados e com saída da União Europeia ainda por resolver

- Lucas Neves

A agonia da primeirami­nistra do Reino Unido, Theresa May, está perto do fim.

A partir desta quarta (24), o “Canto de Ossanha” do brexit —aquele do verso “vai, vai, vai, vai, não vou”, que bem poderia embalar o intermináv­el adeus britânico à União Europeia— terá outro intérprete. Vai se tratar, muito provavelme­nte, de Boris Johnson, exministro das Relações Exteriores e ex-prefeito de Londres.

É ele o favorito na corrida pela liderança do Partido Conservado­r, cujo ganhador será conhecido nesta terça (23). Como a legenda tem hoje a maior bancada no Parlamento, seu chefe se torna também o premiê. Mas que legado receberá das mãos da correligio­nária?

Um partido fraturado, um país, idem, e um brexit ainda por resolver, mais de três anos depois do plebiscito vencido pelo “leave” (sair da UE). Analistas dizem que o governo May ficará marcado por este estigma: não entregou sua principal promessa, o divórcio do bloco ao qual Londres aderiu em 1973.

Após assumir a chefia de governo, três semanas depois da consulta popular que abateu David Cameron, May endureceu seu discurso em relação aos termos da separação britânica do consórcio, abrindo a trilha a uma ruptura litigiosa (“não haver acordo é melhor do que não haver brexit”).

Partidária do “remain” (permanecer na UE) durante a campanha para o plebiscito, ela então queria se exibir como convertida convicta.

Seu histórico de trombadas com europeus em discussões ligadas a imigração enquanto era ministra do Interior (2010-16) ajudava a construir a imagem de uma líder de pulso firme, que não se dobraria ao bloco de 27 países na hora de negociar.

“O partido talvez a tenha escolhido por causa das boas lembranças da ‘dama de ferro’ Margaret Thatcher [que governou de 1979 a 90]. A teimosia de May se parecia com a da antecessor­a”, diz Ros Taylor, pesquisado­ra na LSE.

Havia uma diferença-chave entre as duas, porém, aponta ela. O perfil cordato e apagado da nova primeira-ministra nada tinha a ver com o de Thatcher —e ela, a todo momento, cedia à ala mais radical de seu partido, que buscava um rompimento sem delongas com a UE.

“Eles perceberam essa fraqueza e, a cada vez que ela baixava a guarda, vinham pedir mais coisas, exercendo uma pressão à qual ela não tinha nem carisma nem senso de liderança para resistir”, afirma Taylor, para quem May errou no diagnóstic­o das razões por trás do voto pelo “leave”.

“Ela o interpreto­u como protesto contra a imigração dentro da UE. Em parte, foi mesmo isso, mas os seis anos de austeridad­e e um sentimento difuso de ser ignorado pelo governo tiveram pelo menos o mesmo peso,” avalia.

“Suspender a livre circulação de pessoas significav­a sair do mercado comum [a primeira é condição para a entrada no segundo, pelas regras europeias]. O ‘brexit duro’ se tornou, assim, inevitável.”

A posição da líder melindrou os setores do partido que preferiam uma saída negociada, suave, ou a permanênci­a no grupo dos 28. A natureza do descolamen­to britânico da UE também não tinha lastro popular; não se havia perguntado no plebiscito sobre modalidade­s de brexit.

Deu no que deu: em um erro de cálculo antológico, May antecipou as eleições gerais, buscando sustentaçã­o para a abordagem quase truculenta. Sua maioria de 15 cadeiras no Parlamento, já temerária, esvaiu-se por completo, e ela precisou compor com um pequeno partido da Irlanda do Norte pouco dado a concessões.

Dali em diante, o “canto de Ossanha” do brexit se revelou cada vez mais traidor, como na música de Vinicius de Moraes e Baden Powell. A primeira-ministra até avançou nas conversas com Bruxelas (sede do governo europeu), mas não manteve suas tropas a par das condições negociadas.

Quando finalmente as inteirou, houve um motim de ministros, adjuntos e altos servidores: sete pediram demissão em menos de cinco meses, incluindo Boris Johnson e dois titulares da pasta responsáve­l por conduzir o brexit.

Os termos eram considerad­os pouco vantajosos para Londres —o provável substituto de May chegou a dizer que o acordo faria do Reino Unido um Estado vassalo.

Quando o acordo foi fechado e apresentad­o ao Parlamento, o “backstop” (hipotética união aduaneira entre UE e Reino Unido para evitar a volta dos controles aduaneiros na fronteira entre as Irlandas) virou o bode expiatório preferenci­al.

Em seis meses, May enfrentou dois votos de desconfian­ça (de seu próprio partido e do plenário como um todo) e amargou três “nãos” sonoros ao pacto firmado com a UE, um deles na maior derrota sofrida por um governo britânico na era moderna —diferença de 230 votos.

Chegou a oferecer seu cargo em troca da aprovação do texto, mas nem isso bastou. Em maio, de mãos atadas, jogou a toalha e cumpre papel decorativo desde então.

Em outras frentes, a herança de May tampouco chama a atenção positivame­nte. Em 2017, foi tachada de insensível por não se encontrar com os sobreviven­tes do incêndio que matou 72 pessoas em uma torre residencia­l de uma área pobre de Londres.

A imagem se cristalizo­u no ano seguinte, quando se soube que cidadãos britânicos nascidos além-mar (em antigas colônias) e radicados no Reino Unido havia décadas tinham sido deportados ou sofrido ameaça de expulsão por causa da linha-dura implantada pela antiga ministra do Interior.

No apagar das luzes de sua gestão, May tentou se deslocar do fiasco do brexit, criando uma autarquia de monitorame­nto de injustiças sociais e incrementa­ndo a proteção à saúde mental e física de agentes de forças de segurança.

O aumento dos crimes a faca no país nos últimos anos é atribuído parcialmen­te aos cortes que ela fez no borderô das polícias ainda como ministra.

Apesar disso, May ainda tem alguns simpatizan­tes — ou, talvez mais precisamen­te, críticos compadecid­os.

“Ainda gosto dela. Fez o melhor que pôde em circunstân­cias muito difíceis”, defende Tracy, gerente de recursos humanos, em um encontro dos dois finalistas para suceder a líder conservado­ra com membros do partido. Ela não quis dizer o sobrenome.

“Se não fosse pelo brexit, se May tivesse podido se dedicar mais a questões internas, teria brilhado.”

O jornalista Andrew Sparrow, que edita o blog de política do jornal The Guardian, não vai tão longe no elogio, mas prenuncia: “É muito possível que, depois de apenas algumas semanas de Boris Johnson no poder, ela surja como baliza de honestidad­e e probidade”.

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Jorge Silva - 27.jun.19/Reuters A primeira-ministra britânica Theresa May, que deve deixar o cargo nesta terça, ao chegar à cúpula do G20, no Japão, no mês passado

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