Folha de S.Paulo

Criança dá trabalho

Governo se exime de responsabi­lidades ao deturpar o trabalho infantil

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e”. É doutora em psicologia pela USP

Meu pai, então com 13 anos, acordava nas madrugadas frias de São Paulo para carregar gelo numa banca de peixe do Mercado Municipal. Para se aquecer e parecer adulto junto aos homens com quem trabalhava, encarava uma aguardente. Proporcion­ou uma vida muito mais confortáve­l para os filhos.

Meu sogro ficou órfão e precisou pedir emprego em uma marcenaria aos 10 anos. Ouviu que ainda não tinha idade para trabalhar. Foi sozinho ao juizado e disse que era arrimo de família. Ganhou a permissão e parou de estudar —estava na quarta série. Formou quatro filhos na faculdade.

É tocante a cena do filme “2 Filhos de Francisco” (2005), na qual Zezé Di Camargo e Luciano, ainda crianças, levam para casa os primeiros trocados que serviram para salvar a família da miséria da capital. São histórias sobre as quais uma família pode se orgulhar e que costumam ser contadas por uma descendênc­ia que não precisou passar pelo mesmo. Mas o orgulho do trabalhado­r criança é proporcion­al ao demérito do Estado.

A Constituiç­ão de 1988 admite que se trabalhe a partir dos 16 anos e, na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos. Trabalho noturno, perigoso ou insalubre só a partir dos 18. O trabalho de adolescent­es entre 14 e 18 anos ocorre sob as seguintes condições: é proibido em locais prejudicia­is à sua formação, ao seu desenvolvi­mento físico, psíquico, moral e social, em horários e locais que não permitam sua frequência à escola e, por fim, deve ser garantido o direito de fazer coincidir suas férias com as férias escolares.

A experiênci­a do trabalho infantil pode até forjar caracteres, mas ceifa oportunida­des e muitas vidas. Os casos de sucesso financeiro são tão pontuais que são citados como grande feito. No entanto, eles não dão garantia de que houve uma boa formação física e emocional, pois a exposição ao ambiente profission­al precoce é abusiva.

A escola foi o lugar que a modernidad­e construiu para que as crianças pudessem ser preparadas para ingressar no mundo adulto. Não se trata apenas de aprender a fazer contas, ler e escrever, mas de interpreta­r o mundo, de pensá-lo criticamen­te e de ser protegido física e psiquicame­nte.

A maioria das crianças já comerciali­zou objetos, aprendeu algumas atividades dos pais, fez bicos, lidou com algum dinheiro e, se não o fez, perdeu a chance, pois pode ser bem divertido. Mas confundir esse exercício informal e tutelado com o trabalho infantil, que as campanhas internacio­nais denunciam, é má-fé.

A Idade Média não pode servir de modelo para o futuro das nossas crianças.

Essa naturaliza­ção tem sido um dos grandes entraves mundiais para a eliminação do trabalho infantil, e as frases que saem da boca de Bolsonaro, Joice Hasselmann e companhia parecem conversa de boteco, alimentand­o ainda mais essa visão distorcida do fenômeno.

Os motivos são claros: cabe ao poder público pensar e oferecer saídas —leia-se escolas e condições sociais para as famílias— para que as crianças não precisem trabalhar na agricultur­a, na construção civil, nos lixões, nas ruas, nas fábricas e, finalmente, na prostituiç­ão.

Mas, ao invés de se responsabi­lizar pela empreitada e continuar apontando a bússola para a erradicaçã­o do problema, o presidente inverte a direção e faz piada de uma de nossas maiores tragédias.

Como cantam os queridos Paulo Tatit e Sandra Peres do grupo Palavra Cantada: “criança não trabalha, criança dá trabalho”. Mas isso é música que só criança que teve infância pôde ouvir.

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