Folha de S.Paulo

Batucada do samba cabia na mão de João Gilberto

O polegar era o surdo e os dedos faziam as vezes do tamborim em arranjos que levavam a voz depurada ao primeiríss­imo plano

- Walter Garcia Músico, professor da USP e organizado­r de “João Gilberto” (Cosac Naify, 2012)

“Bossa” significav­a “talento” ou “lábia” desde o tempo de Noel Rosa, nos anos 1930. O termo se fixou nas ruas do Rio de Janeiro, por caminhos difíceis de precisar, até que Tom Jobim e Newton Mendonça compuseram “Desafinado”.

Lançada por João Gilberto em 1959, num disco 78 rotações, a canção ampliava o sentido de “bossa”. “Se você insiste em classifica­r/ Meu comportame­nto de antimusica­l/ Eu mesmo mentindo devo argumentar/ Que isto é bossa nova, isto é muito natural.”

Em março daquele ano, é lançado o primeiro LP de João, “Chega de Saudade”. Na contracapa, Tom Jobim apresenta o artista como “um baiano ‘bossa nova’ de 27 anos”.

Na força de sua jovem maturidade, João somava a riqueza cultural da Bahia (aprendida em Juazeiro mas, sobretudo, com a obra de Dorival Caymmi), o contato com a vida carioca (“bossa”) e a promessa de modernidad­e (“nova”).

Se o tom publicitár­io é claro, a sonoridade das 12 faixas sustenta fórmula. Surgia um projeto estético que João desdobrari­a nas décadas seguintes.

A canção popular é construída por melodia, letra, acompanham­ento harmônico e pulsação rítmica. Esses elementos se articulam. Por exemplo, a junção de melodia e letra é realizada pelo canto, que traz as intenções do intérprete.

Na bossa nova de João Gilberto, a voz dispensava efeitos dramáticos ou virtuosíst­icos. Dando continuida­de à lírica moderna de Carlos Drummond de Andrade, João expressava com naturalida­de a observação dos sentimento­s, como se estivesse numa conversa íntima, fazendo com que a emoção reverberas­se depurada à luz da racionalid­ade.

Uma vez que essa atitude requer pouca intensidad­e, o seu canto ficava próximo dos instrument­os mas, ainda assim, ocupava o primeiro plano. A bossa nova é solista e dificulta manifestaç­ões coletivas, como as associadas ao samba.

Tom e Mendonça iniciaram, contudo, “Samba de uma Nota Só”, gravada por João em 1960, com “eis aqui este sambinha”. E Baden Powell notou, em entrevista a Zuza Homem de Mello, que a mão direita de João concentrav­a a batucada de samba: o polegar estilizava um surdo; os dedos fraseavam como um tamborim.

Em 1990, entretanto, o próprio João Gilberto afirmaria à pesquisado­ra Edinha Diniz: “Mas isso, essa bossa, é outra coisa: é samba e não é samba”.

Em termos simples, o paradoxo se dá porque seu polegar, via de regra, ficava próximo da marcação do contrabaix­o que já havia tanto no samba-canção quanto no jazz (no estilo walking bass, mas com só uma nota por tempo). E os outros dedos tocavam ou variavam uma figura criada com três ataques por compasso, a famosa base que “é uma só”.

Ela foi criada por João a partir do tamborim ou da caixa sem estar exatamente em nenhum dos dois. Quando apenas a base era tocada, a bossa nova se afastava do samba, quando era variada, se aproximava: “É samba e não é”.

Música que respondeu a contradiçõ­es da nossa sociedade segundo a percepção de uma parcela da classe média, a bossa nova se tornou um dos emblemas do Brasil no mundo.

Os limites desse processo recebem uma crítica aguda em “Gota d’Água {Preta}”, direção de Jé Oliveira para o texto de Paulo Pontes e Chico Buarque, atualmente em cartaz.

Nesse espetáculo teatral, DJ Tano toca um sample de “How Insensitiv­e (Insensatez)”, de Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Norman Gimbel, para anunciar a entrada de Creonte (Rodrigo Mercadante). O empresário ostenta a sofisticaç­ão da bossa, junto a quadros de Romero Britto, para guardar distância em relação aos moradores da Vila do Meio-Dia e marcar a intenção de extirpar as raízes do sambista Jasão (Jé Oliveira), fincadas na pobreza e na identidade negra.

No dia seguinte ao da morte de João Gilberto, a Unesco fez um minuto de silêncio em sua reunião, consideran­do a “perda para o patrimônio cultural” e o impacto do artista “na história da música”. João projetou uma forma brasileira de interpreta­r composiçõe­s dos Estados Unidos, do México, da Itália, da França.

A sua diluição como música de elevador, espera telefônica, consultóri­o ou aeroporto não diz muita coisa além do enorme sucesso como produto de exportação. Guardadas as devidas proporções, ouvir bossa nova assim é o mesmo que conhecer obras da Galleria degli Uffizi ou do Museu d’Orsay por meio de reproduçõe­s em ímãs de geladeira.

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Fotos Reprodução Da esq. à dir., na frente, Tom Jobim e João Gilberto com músicos na boate Au Bon Gourmet, no Rio de Janeiro, em 1962; e Helô Pinheiro, a garota de Ipanema, em retrato de Milan Alram
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