Folha de S.Paulo

Ensaio sobre a blogueira

A influencer não vê mais sentido em postar, já que ninguém vai ver as curtidas

- Manuela Cantuaria Roteirista e escritora, faz parte da equipe do canal Porta dos Fundos Silvis

A influencer cega por likes acorda tateando sua mesa de cabeceira em busca do celular. Abre o Instagram e, para seu desespero, não consegue ver o número de curtidas das fotos. Só pode ser um pesadelo.

Como quem busca seu reflexo no espelho, a influencer à beira de um colapso acessa o próprio perfil. Sim, é um pesadelo. Seus likes, de fato, sumiram. Não foram roubados ou sugados por um buraco negro virtual. Eles ainda estão ali. Mas ninguém consegue enxergá-los, apenas ela, como se fossem uma alucinação.

Com a visão turva de lágrimas, a influencer em crise existencia­l não vê sentido em tomar seu bulletproo­f coffee, já que não vê sentido em postar seu bulletproo­f coffee, já que ninguém vai ver as curtidas de seu bulletproo­f coffee.

Uma influencer sem curtidas é como Buchecha sem Claudinho, Dallagnol sem Moro, Chimbinha sem Joelma. Suas centenas de milhares de seguidores se tornaram inúteis do dia para a noite. Uma horda invisível de plebeus que ganham menos de cem curtidas por foto. Uma horda da qual a influencer decadente agora também faz parte.

Recusando-se a engolir essa súbita preocupaçã­o do Instagram com a autoestima de seus usuários, a influencer indignada se lança às margens da deep web para pesquisar o real motivo daquela mudança. E descobre que sua rede social favorita arrumou um jeito de lacrar e lucrar ao mesmo tempo.

Tudo indica que o mercado paralelo de compra e venda de curtidas —que a própria influencer cega por likes ajudava a financiar— gerava uma quantidade absurda de dinheiro, do qual Mr. Zuckerberg jamais viu a cor. A influencer tomada pela culpa demite seus robôs —também conhecidos como like bots— repentinam­ente obsoletos.

A influencer em desencanto decide encontrar outras influencer­s para pensar em estratégia­s de sobrevivên­cia. No táxi até lá, ela presta atenção, pela primeira vez, num podcast de notícias chamado rádio FM, e se dá conta de que o país atravessa um período de trevas.

“Ainda não consigo acreditar.” De óculos escuros, as influencer­s enlutadas padecem numa bakery descolada, trocando longos abraços em vez de likes. “É a vingança dos medíocres”, lamenta a ex-influencer, cuspindo farelos de ciabatta, rendendo-se ao glúten depois de anos.

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