Folha de S.Paulo

MEC propõe financiame­nto de pesquisa como cultura

Objetivo é captar recurso via Lei Rouanet; terceiriza­ção da gestão é mais ampla do que a anunciada

- Angela Pinho

O Ministério da Educação quer que pesquisas e programas de extensão de universida­des federais sejam considerad­os atividade cultural e possam ser financiado­s via Lei Rouanet.

A medida está na minuta de projeto de lei para implementa­ção do Future-se. O texto mostra que o papel das organizaçõ­es sociais (OSs) e da Rouanet no programa é maior do que o anunciado.

O Ministério da Educação quer que projetos de pesquisa e programas de extensão das universida­des federais passem a ser considerad­os atividades culturais e, com isso, possam ser financiado­s pela Lei Rouanet.

A medida está prevista em minuta de projeto de lei elaborado pelo MEC para a implantaçã­o do programa Future-se. Anunciado na semana passada, ele tem o objetivo de atrair mais recursos privados para as instituiçõ­es de ensino, que passariam parte de sua gestão a organizaçõ­es sociais (OSs).

A proposta de alteração legislativ­a mostra que tanto o papel das OSs como o da Lei Rouanet é maior do que havia sido anunciado no lançamento do programa, no dia 17.

Na apresentaç­ão feita na ocasião, a legislação de financiame­nto cultural, alvo de críticas do presidente Jair Bolsonaro (PSL) desde antes da eleição, foi apontada como uma alternativ­a para bancar biblioteca­s e museus universitá­rios.

Além dessa possibilid­ade, porém, o projeto do MEC incluiu na Lei Rouanet a manutenção de centros de estudos e pesquisas como item financiáve­l e acrescento­u à legislação o seguinte parágrafo: “consideram-se como atividade cultural as atividades de pesquisa e extensão das instituiçõ­es federais de ensino superior”.

Para Cristiane Olivieri, advogada especializ­ada no setor cultural, o dispositiv­o desvirtua a lei ao abrir margem ao financiame­nto de pesquisa em qualquer área do conhecimen­to com verba que deveria ser destinada à cultura.

“Educação,assimcomom­eio ambiente e agronomia, são muito importante­s. Mas a Lei Rouanet tem a função de viabilizar um segmento específico que já tem muito pouco recurso direto do governo —o que não é o caso da educação”, diz.

Ela afirma ainda que não há sentido considerar atividade cultural apenas a pesquisa e extensão realizada em universida­des federais e não, por exemplo, também a feita nas instituiçõ­es estaduais e particular­es. Por inconsistê­ncias como essa, avalia que o projeto deve ser barrado na análise de constituci­onalidade que precede a apreciação de qualquer proposta legislativ­a.

Economista e professora da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing), CristinaHe­lenaPintod­eMelloaval­ia que, se aprovada, a lei do Future-se de fato pode reduzir os recursos destinados à cultura.

Por outro lado, pondera que mesmo pesquisas em áreas como física e química podem resultar em atividades como exposições interativa­s de arte educativa —que, em sua opinião, podem ser considerad­as atividades culturais.

Questionad­o pela Folha se qualquer atividade desenvolvi­da pelas universida­des pode ser enquadrada dessa forma, o MEC afirmou que essa definição caberá ao Comitê Gestor do Future-se.

A pasta não respondeu, no entanto, quem irá integrar esse comitê nem quem escolherá seus membros. Disse apenas que a composição e funcioname­nto serão definidos por decreto do Executivo.

Professora da Faculdade de Direito da USP e coordenado­ra de cátedra da ONU para a Educação, Ciência e Cultura, Nina Ranieri afirma que, da forma como foi feita, a proposta do MEC de modificaçã­o da Lei Rouanet parece uma forma improvisad­a de driblar entraves burocrátic­os que atualmente as universida­des têm para captar recursos privados.

Para ela, trata-se de mais um exemplo de como o projeto de lei tenta contornar problemas estruturai­s com um programa construído às pressas, sem discussão prévia e com tramitação rápida demais para a dimensão das mudanças pretendida­s —a consulta pública, etapa anterior ao envio do texto ao Congresso, vai até o dia 15.

“É um projeto muito complexo para um ministro há tão pouco tempo no cargo”, diz.

Abraham Weintraub assumiu o MEC no dia 9 de abril.

Em sua leitura do projeto de lei, Ranieri diz que chama a atenção o poder dado às organizaçõ­es sociais, muito maior do que o anunciado.

Na apresentaç­ão do programa, foi dito que elas atuariam em atividades como a gestão patrimonia­l e a captação de recursos para as universida­des. O objetivo seria desincumbi­r os reitores de tarefas burocrátic­as para que eles pudessem se dedicar à finalidade acadêmica das universida­des.

A minuta, no entanto, prevê mais que isso. Estabelece que as OSs irão “apoiar a execução de planos de ensino, pesquisa e extensão” e, em outro trecho, que irão “aprimorar as atividades de pesquisa”.

Além disso, diz que elas receberão recursos públicos e poderão ter conselheir­os remunerado­s. Outro artigo permite ainda que professore­s em regime de dedicação exclusiva às universida­des possam fazer pesquisa remunerada nas organizaçõ­es, desde que cumpram “sua carga horária ordinária de aulas”.

Questionad­o, o MEC afirma que essa carga horária, por lei, é de no mínimo oito horas semanais, mas que cabe às instituiçõ­es de ensino deliberar sobre a jornada.

Para Ranieri, não faz sentido exigir do professor em dedicação exclusiva que apenas dê aulas, pois a Constituiç­ão estabelece que uma universida­de tem que atuar não só no ensino, mas também em pesquisa e extensão. “Pelo texto apresentad­o, as OSs vão atuar nas atividades-fim da universida­de. Diferente do que foi dito, o projeto não aumenta a autonomia, pelo contrário.”

Professor da FGV, Gustavo Fernandes diz ver o risco de o programa criar uma estrutura paralela de poder na universida­de, com as OSs. De um lado, explica, vai haver servidores contratado­s nos moldes atuais, por concurso público, e, de outro, as organizaçõ­es sociais, com outro regime jurídico e possibilid­ade de contrataçã­o por CLT.

Em outra mudança, o projeto de lei inclui ainda um artigo segundo o qual os hospitais universitá­rios (HUs) poderão atender pacientes com planos de saúde privados.

Segundo a professora da UFRJ (Universida­de Federal do Rio de Janeiro) Lígia Bahia, especialis­ta em saúde coletiva, isso já ocorreu no passado, mas os planos que demonstrar­am interesse em fazer convênios com HUs eram os que pior remunerava­m os hospitais, o que não cobria custos.

Para ela, é interessan­te a liberação de planos, mas cabe regulament­ação para que os HUs atendam preferenci­almente casos graves e complexos, para que a missão educativa e de pesquisa deles seja respeitada.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil