Folha de S.Paulo

Assassino de brasileira na Nicarágua é libertado, diz jornal

- Flávia Mantovani

Um ano depois da morte da estudante de medicina brasileira Raynéia Gabrielle Lima na Nicarágua, o homem que confessou o crime e que havia sido condenado a 15 anos de prisão foi posto em liberdade pela Justiça, segundo um documento judicial obtido pela imprensa do país.

Raynéia, de 31 anos, foi atingida com um tiro de fuzil quando dirigia seu carro na capital, Manágua, em 23 de julho de 2018. A Nicarágua vivia o auge de uma onda de protestos contra o ditador Daniel Ortega e uma forte repressão a opositores que deixou centenas de mortos e milhares de feridos.

O vigilante Pierson Gutiérrez Solís se apresentou como autor do crime, dizendo que viu o veículo da estudante em alta velocidade, achou que corria perigo e atirou.

No ano passado, ele foi condenado a 14 anos de prisão por homicídio e 1 por porte ilegal de armas. No último dia 3, seu advogado solicitou a extinção do processo e sua libertação.

Nesta terça (23), um ano após o crime, o jornal El Nuevo Diario publicou um documento de 5 de julho em que os juízes ordenam a libertação de Solís com base na Lei de Anistia promulgada em junho, que levou à libertação de presos políticos. A decisão também cancela os registros de antecedent­es penais de Solís.

Para Paulo Abrão, secretário-executivo da Comissão Interameri­cana de Direitos Humanos, ligada à OEA (Organizaçã­o dos Estados Americanos), crimes como esse não deveriam ser anistiados.

“Graves violações a direitos humanos não podem ser submetidas a processos de anistia. Isso é um ‘standard’ jurídico interameri­cano consolidad­o em diferentes decisões da Corte”, afirma. “A decisão escancara a falência do Estado de Direito e da independên­cia judicial na Nicarágua.”

Abrão diz que a notícia explicita “a contradiçã­o do governo, que sempre defendeu que o assassinat­o não se vinculava aos protestos, objeto da lei [de anistia]”.

Segundo investigou o jornal Confidenci­al, Solís é militante da Frente Sandinista de Libertação Nacional, de Daniel Ortega, e trabalhava como segurança na Albanisa, parceria do governo com a petroleira estatal venezuelan­a PDVSA.

A região da sede da empresa, a 500 metros de onde Raynéia foi morta, era ponto de confronto de estudantes com as forças de Ortega e estava ocupada por paramilita­res —que, segundo relatos, ajudam a defender o governo e usam o tipo de arma que matou a brasileira.

Para Abrão, apesar de o governo nicaraguen­se ter tentado desvincula­r a morte de Raynéia do contexto das manifestaç­ões para preservar as relações com o Brasil, “não há dúvidas” de que os episódios estão interligad­os.

“Era um momento em que forças policiais e paramilita­res estavam pré-autorizado­s a agir de forma desproporc­ional.”

A mãe de Raynéia, Maria José da Costa, 56, vem se queixando de falta de informaçõe­s sobre as investigaç­ões desde o crime e diz que não sabe nem se Solís estava de fato preso.

“Eu sempre comentei desde o princípio que isso é uma verdadeira palhaçada. Estão pensando que sou alguma idiota. Mas a verdade vai aparecer cedo ou tarde.”

O julgamento do caso foi a portas fechadas, durou 35 minutos e não teve a presença de um representa­nte da família de Raynéia. Maria José questiona o desapareci­mento de provas, como imagens de câmeras de segurança e o próprio carro da estudante.

Ela só agora conseguiu representa­ntes legais para o caso da filha. A Acción Penal, uma organizaçã­o de advogados que defendem gratuitame­nte vítimas de violações de direitos humanos na Nicarágua, vai assumir o caso.

Boanerge Fornos, coordenado­r jurídico do grupo, diz que ainda não conseguiu confirmaçã­o oficial sobre a decisão de soltar Solís, mas que o documento divulgado aparenteme­nte é verdadeiro.

“Já tínhamos a teoria de que eles haviam usado a Lei da Anistia para pedir a extinção do processo. Mas isso vai contra o espírito da lei, que se supõe ser dirigida a manifestan­tes que atuaram contra o governo. Neste caso particular, não é aplicável”, afirma.

Deprimida pelo luto, a mãe de Raynéia se mudou de cidade no estado de Pernambuco para ficar próxima à família.

Ela reuniu as lembranças da filha no “Cantinho de Ray Lima”, um lugar em casa que tem objetos como um jaleco bordado, roupas, fotos na parede, cremes e um passaporte.

Maria José também se prepara para lançar um livro sobre a vida de Raynéia, por uma editora local, que ela financiou com empréstimo­s de amigas e o parcelamen­to do restante.

“Vou contar todo o sacrifício dela para realizar o sonho de ser médica. Não consigo tirála da minha mente nem por um segundo. Não quero que minha filha seja esquecida.”

Segundo a CIDH, apesar da libertação de mais de 490 presos políticos, de fevereiro a junho deste ano, após negociaçõe­s entre governo e oposição, a repressão continua, com proibição a protestos, perseguiçã­o a pessoas liberadas e seus familiares e detenções ilegais. A comissão denuncia que faltam ser liberados cerca de 90 presos políticos.

Graves violações a direitos humanos não podem ser submetidas a processos de anistia. A decisão escancara a falência do Estado de Direito na Nicarágua Paulo Abrão secretário da Comissão Interameri­cana de Direitos Humanos

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Arquivo pessoal A brasileira Raynéia Lima, que foi morta em 2018

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