Folha de S.Paulo

Casas sigilosas blindam mulheres em risco de companheir­os violentos

Repórter passa semana em uma das 70 instituiçõ­es no país que abrigam vítimas de violência

- Helena Bertho Esta reportagem foi originalme­nte publicada em azmina.com.br

caxias do sul (rs) | revista azmina “Desce aqui que eu quero conversar”. Maria, 23, sabia que, se não descesse, ele subiria no apartament­o. Melhor que fosse em público. O namorado apôs no carro e começou abaterem sua cabeça com o celular, abrindo cortes e fazendo com que o sangue escorresse por seu rosto. Afilha de três anos assistia.

“Isso na frente do prédio. Ninguém fez nada, como antes ninguém nunca chamou a polícia nem ajudou. Eu gritava. Eu e minha filha.”

O domingo de surra podia ter sido mais um de uma sequência que se estendia por três meses. Mas o irmão de Maria insistiu p araque fossem ao hospital eà delegacia.

“No dia seguinte, ele [o então namorado] começou ame procurar como louco e eu achei que ia morrer. Minha cunhada descobriu acasa abrigoe eu pensei: é minha única opção.”

A“casa abrigo”éa Casa de Apoio Viva Rachel, que fica em Caxias do Sul( RS) e temono mede sua criadora, a vereadora RachelC alli ari Graz zio tin(PDT ;1983-88). Are porta- gem da Revista Az Mina passou uma semana no local, que faz acolhiment­o amulhere salvo de violência doméstica.

Com endereço sigiloso, acasa integra as políticas públicas federais para enfrentara violência contra amulhere recebe aquelas que, como Maria, correm risco de morte. Há 70 casas assim no Brasil, segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Apesar de apolítica nacional de abrigament­os er de 2011, elas precedem a diretriz.

O caso de Maria ilustra um Brasil onde 1 em cada 4 mulheres sofreu algum tipo de violência em 2018, segundo pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Públic aedo Datafolha. Olaré o ambiente onde avio lênciaémai­sf requente (42%), e em 76% dos casos o agressor era conhecido.

Encaminhad­as pelo Centro de Referência da Mulher ou pela delegacia da mulher, as vítimas podem ficar com os filhos no abrigo por até 90 dias. Sem celular nem internet, o contato exterior é mediado por profission­ais da casa.

“Existe um imaginário de que essas casas são como prisão”, diz Rita, diretora da instituiçã­o. Boa parte disso se deve ao fato de as casas serem sigilosas —pelo sigilo, os nomes de todas as funcionári­as e acolhidas foram trocados.

“Quando cheguei, achava que seria um presídio ”, diz Maria. Masa casaé grande, limpa e organizada, tem horta e parque no quintal e uma ampla sala de jantar. Ainda assim, é um espaço restritivo.

“As abrigadas trazem muito isso: ‘sou vítima de violência e estou presa aqui, enquanto ele está lá em casa’. É uma medida protetiva, mas ao mesmo tempo tem uma leitura de medida punitiva”, diz Eler Sandra de Oliveira, diretora de Proteção Social de Alta Complexida­de de Caxias do Sul. “Precisamos mexer nessa metodologi­a para que não seja um cárcere.”

Acasa tem regras. Horário de atividades para as mulheres e os filhos, para acordar, fazer limpeza, tomar banho e encontrara psicóloga e a assistente social. No tempo livre elas conversam ou veem TV.

Educadoras acompanham as mulheres e crianças em saídas a hospital, delegacia, juizado e outros serviços necessário­s, além de organizare­m atividades dentro da casa.

“Recebemos o boletim de ocorrência, a situação das crianças, da escola e fazemos os encaminham­entos necessário­s: para o Judiciário, conselho tutelar. Já pedimos medida protetiva, afastament­o do lar. Tudo no dia seguinte ao que elas chegam”, conta Rita.

Para muitas, ficar na casa vai além da proteção. Segundo a psicóloga responsáve­l, Margarida, o trabalho é para que elas achem alternativ­as.

Profission­ais e acolhidas criam um plano de saída: identifica­m quem são as pessoas com quem elas podem contar, a situação financeira e quais vão ser as necessidad­es fora da casa para estabelece­r uma vida sem o companheir­o.

“Essa mulher precisa de um tempo para pensar na violência, nela, sem se preocupar se os filhos estão com fome”, diz Érica, estagiária de psicologia.

A instituiçã­o contata as redes de assistênci­a social, proteção à mulher e saúde locais. Caxias tem uma rede bem estruturad­a, com centro de referência, delegacia da mulher, juizado e ações públicas.

A casa é gerida em colaboraçã­o entre a prefeitura e uma organizaçã­o de caridade. A Secretaria de Segurança custeia aluguel e contas, segurança e o transporte das mulheres, e a Fundação de Assistênci­a Social repassa verbas à instituiçã­o católica Projeto Mão Amiga, que paga as funcionári­as e compra materiais e comida.

Um termo de colaboraçã­o garantiu o repasse de R$ 438 mil à organizaçã­o de novembro de 2017 a novembro de 2018 e R$ 277 mil de novembro de 2018 a junho de 2019.

A casa abrigo, porém, não é solução. “Não posso dizer que a casa resolve o problema da violência. Há a orientação, a lei, a prevenção. Mas nem sempre a mulher consegue chegar aqui”, diz Thais Bampi, gerente do Centro de Referência da Mulher de Caxias.

De 2016 a 2018, 12% das 188 mulheres acolhidas na Viva Rachel voltaram a viver com os homens que as agrediram. E 25,9% das abrigadas passam pela casa mais de uma vez.

A Justiça gaúcha trata os agressores no projeto Hora, em que há atendiment­o de psicólogos. Quando a mulher solicita medida protetiva, o homem é intimado a comparecer e decidir se participa.

“São dez encontros em que trabalhamo­s questões de gênero, as funções masculinas e, mais do que tudo, sentimento­s”, conta Elaene Tubino, coordenado­ra do programa. Até hoje, 751 homens passaram pelo projeto. Deles, 27, ou 4%, foram acusados novamente.

O final feliz, porém, não está ao alcance de todas. Embora o caso seja único em 20 anos da instituiçã­o, a Viva Rachel não evitou um feminicídi­o.

Caroline dos Santos Ramires se mudou com o marido para Caxias, em 2015, aos 21. Os dois viviam em uma pensão e brigaram por dinheiro.

No seu boletim de ocorrência se lê: “Comunica que seu companheir­o na data de hoje disse que só não mataria a vítima naquele momento, pois não era hora nem lugar. Mas que lhe mataria na primeira oportunida­de que tivesse. O suspeito ainda lhe empurrou e lhe deu um chute na costela”.

Com uma filha de oito anos e sem família perto, ela ficou 45 dias na casa, até que a equipe conseguiu casa e emprego em uma cidade próxima.

“Quando saiu, ela disse que ia morrer”, diz Marta, cozinheira do abrigo. Carolina foi assassinad­a dois meses depois, a caminho do trabalho com 24 facadas do homem que, meses antes, anunciara o intento.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil