Folha de S.Paulo

Um aplicativo para ser humano

Tentativas de desenhar o futuro conectado não podem excluir a diversidad­e

- Jairo Marques Jornalista, especialis­ta em jornalismo social pela PUC-SP. É cadeirante desde a infância jairo.marques@grupofolha.com.br

Aos poucos, tem sido possível notar que há um enorme contrassen­so em torno dos aplicativo­s tecnológic­os que são criados aos borbotões geralmente com a finalidade de melhorar a vida do “serumano”, de torná-la mais prática e versátil.

Enquanto os bits trabalham buscando o veículo mais próximo para te levar à casa da vovó no Jabaquara, dispondo a lista dos restaurant­es naturebas mais badalados e mostrando telefones de “consertado­res de torneira” em sua região, está tudo certo. É a festa da comodidade do século 21!

Os perrengues começam a ocorrer quando toda a modernidad­e, impessoali­dade e praticidad­e do app precisam interagir com a “interface” comedora de arroz com feijão e efetiva beneficiár­ia —e pagadora— de um serviço requerido.

Comigo é assim: peço um carro pelo aplicativo, como qualquer pessoa, para realizar uma tarefa do dia a dia.

Checo o valor, confirmo e pronto. É só fazer mandinga para conseguir chegar ao destino, pois, logo que o motorista para ao meu lado, vem uma saraivada de questionam­entos (isso quando ele não cancela a corrida e vai embora):

— A cadeira de rodas vai no carro também?, costumam perguntar os “motoras”, sem ao menos saírem do veículo, sem fazerem um afago, sem falarem do frio...

— Não, não. Ela é treinada. Vou jogando ração pela janela e ela vem correndo atrás do carro, costumo responder brincando.

Outro dia, um rapaz da Uber me disse uma nova:

— Meu carro não está preparado para vocês...

Olhei ao meu redor para tentar encontrar quem mais iria comigo.

— Moço, se eu for esperar que o mundo se prepare para mim, vou ter de me guardar no formol.

— Ah, mas tem o Uber Bag! — Ser uma mala. Olha o que me restou na vida, pensei.

O que poucos motoristas de aplicativo fazem —e seus patrões cibernétic­os pouco estimulam— é tentar agir com empatia, perguntar a melhor forma de atender, perguntar como proceder diante de uma necessidad­e diferente do dia a dia.

Com a conveniênc­ia de trabalhar com um app, fica de lado um treinament­o —ou mesmo uma refrescada relativa a valores que a gente aprende quando criança— que aborde questões inerentes à interação humana, o que dificilmen­te o logaritmo irá dar conta.

Quando se pede uma lasanha pelo programa do telefone celular e depois de duas horas de espera o “sistema” cancela a compra, parte dos consumidor­es não vai querer um bônus para usar no dia seguinte —em que não se quer mais comer massa— e seguir para a cama com fome, fazendo cruz na testa, como se diz lá na minha terra.

Que raios aconteceu com o seu Manuel da cantina que nunca falhava? Ou será que houve algo com o entregador durante a tempestade? Ou será que o aqueciment­o global queimou o jantar?

Coisas de gente, coisas de sentimento­s.

É “maraviwond­erful” poder contar com avanços que parecem fazer o mundo ficar na palma da mão, que ampliam as possibilid­ades de aproveitar a vida. Mas os mecanismos que colocam a realidade no futuro, que otimizam a maneira de ser, não podem se furtar de enxergar o peito dos desafinado­s, dos pouco descolados, dos não padronizad­os.

Qualquer tentativa de desenhar o futuro cheio de conectivid­ade e liberdades não pode excluir a diversidad­e e as múltiplas maneiras de ser de suas funcionali­dades, pois, sendo assim, terá fracassado no básico conceito de evoluir para além da caverna.

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