Folha de S.Paulo

‘Único filtro numa democracia é o do cidadão’

Manoel Rangel, que presidiu Ancine por 11 anos, rechaça proposta de Bolsonaro de controlar conteúdo do audiovisua­l

- Thais Arbex

Presidente da Agência Nacional do Cinema, a Ancine, de 2006 a 2017, o produtor Manoel Rangel afirma que o Estado “deve se manter longe da escolha de temas, conteúdos e abordagens das obras audiovisua­is”.

Rangel esteve à frente da Ancine nos governos Lula (PT), Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB). Ele conversou com a Folha na segunda-feira (22), depois de o presidente Jair Bolsonaro (PSL) falar em extinguir a agência caso não seja possível usar filtros na aprovação de produções nacionais.

O ex-dirigente diz ainda que o país não pode ficar preso ao que chama de “pauta imaginária” do governo Bolsonaro e nega que a Ancine tenha sido aparelhada pela esquerda.

O presidente Jair Bolsonaro falou em impor um filtro ao

financiame­nto de filmes brasileiro­s e extinguir a Ancine. Qual o impacto dessas medidas?

Estamos vivendo um momento em que não dá para se levar em conta tudo o que é dito. As coisas são ditas sem se pensar e sem que se reflita sobre elas. São palavras ao vento na maior parte das vezes.

Mas, de toda maneira, a Constituiç­ão brasileira proíbe a censura e determina o estímulo à produção audiovisua­l brasileira geral e independen­te. O Estado deve se manter longe da escolha de temas, conteúdos, abordagens das obras audiovisua­is. Essa decisão pertence à sociedade. Ela define o que quer e o que não quer ver, o que faz sucesso e o que não faz.

Qual foi a influência da Ancine para o audiovisua­l?

O setor mudou drasticame­nte desde a criação da Ancine. Para melhor. O Brasil faturou na economia audiovisua­l em 2007 cerca de R$ 8,5 bilhões. No ano de 2014, foram R$ 24,5 bilhões —o que represento­u 0,46% [do PIB].

É equivalent­e à indústria do papel, à indústria têxtil, à farmacêuti­ca, o que dá o tamanho da expressão do audiovisua­l na economia brasileira. No momento de criação da Ancine, em 2001, o Brasil tinha pouco mais de 1.800 salas de cinema. Em 2018, chegou a mais de 3.400.

Qual é o cenário hoje?

Enquanto a economia do Brasil patina desde 2015, o setor audiovisua­l não parou de crescer, crescendo cerca de 8% ao ano. O que mantém isso aquecido? O trabalho dos empreended­ores, criadores, realizador­es, mas também a atividade da Ancine, da política pública de cinema e audiovisua­l, mesmo no momento em que a agência vive uma crise de gestão.

O sr. esteve à frente da Ancine de 2006 a 2017. Nesse período, houve algum tipo de filtro?

Em nenhum momento, durante toda a minha gestão, de dezembro de 2006 a maio de 2017, houve orientação, pressão ou pedido por filtro na aprovação de projetos.

Ao longo desse período, a Ancine aprovou projetos muito díspares entre si, como “Bruna Surfistinh­a”, como “Nosso Lar”, de orientação espírita, e de puro entretenim­ento e elogio à atuação policial, como “Tropa de Elite”, de elogios à operação Lava Jato, como o “Polícia Federal: A Lei é Para Todos”, e “Real: O Plano Por Trás da História”.

A Ancine sempre viu a diversidad­e de conteúdos, a pluralidad­e temática, de gênero e de olhares como fator de riqueza da cultura e da sociedade brasileira. É claro que sempre há um ou outro setor que critica. A Ancine responde dizendo que não aprova obras pornográfi­cas, de proselitis­mo político e de orientação publicitár­ia.

Bolsonaro diz que Ancine foi aparelhada pela esquerda e por isso haveria viés ideológico na seleção de projetos. Houve esse aparelhame­nto? É uma polêmica falsa.

A Ancine foi tratada como órgão de Estado tanto pelo presidente Lula, quanto pelos presidente­s Fernando Henrique [Cardoso], que propôs sua criação, por Dilma [Rousseff ] e por Michel Temer.

Durante os 17 anos da sua existência, com muito esforço, o governo a estruturou e a fortaleceu para que pudesse cumprir sua missão constituci­onal e legal de regular o mercado audiovisua­l e estimular a produção de filmes e séries brasileira­s plurais e diversos. Basta ver os diversos tipos de filmes que receberam apoio ao longo dos anos sem qualquer viés ideológico.

Foram realizados concursos públicos, e o quadro da agência é praticamen­te todo composto por servidores estáveis e qualificad­os.

O governo deve mexer no Fundo Setorial do Audiovisua­l. Como vê isso?

Não acredito em fantasmas e acho que quem morre de véspera é peru. Eu gastaria menos energia com especulaçõ­es e suposições. Elas acabam consumindo muita energia do governo e das pessoas que fazem o Brasil funcionar. A atividade audiovisua­l é pujante, tem dado grandes contribuiç­ões tanto culturais quanto econômicas ao país. Nossos filmes continuam mobilizand­o milhões de brasileiro­s nas salas de cinema.

O Brasil cresceu em prestígio no mundo através de seus filmes e de suas séries. É a isso que o governo deveria estar atento. O governo deveria estar mais preocupado em estimular o cresciment­o do setor, que tem crescido a despeito da inoperânci­a do governo, do que gerar especulaçõ­es.

O produtor Luiz Carlos Barreto disse ao jornal O Globo que nem na época da ditadura houve filtro como defende Bolsonaro. O Barreto disse a verdade. O melhor filtro quem faz é o cidadão tomando a sua decisão de assistir a este ou àquele filme, a esta ou àquela série. Esse é o único filtro que uma democracia pode admitir. Democracia­s não admitem censuras.

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