Folha de S.Paulo

A fórmula da felicidade senil

Descobri um aplicativo bem melhor do que o do envelhecim­ento fotográfic­o

- Marcelo Coelho Membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances ‘Jantando com Melvin’ e ‘Noturno’. É mestre em sociologia pela USP

Qual vai sera sua aparência daqui a 20 anos? O aplicativo está na moda, mas me interessa pouco. Já tendo passado dos 60, gostaria mais de algo no sentido inverso.

Meu programa defo torre juvenescim­entos e ria, aliás, um bom teste para todas as arapucas desse gênero. Eu poderia comparar o resultado eletrônico com meus retratos reais de 1990 e ver se confere. Duvido.

Talvez esteja aí a graça do envelhecim­ento pela internet. Alterada a sua foto, você não sai tão horrível quanto temia. Seu envelhecim­ento, digamos assim, é meramente cosmético.

A máquina não prevê um ganho de 40 quilos; acrescenta, pelo que vi, apenas uma boa porção de rugas, cabelos brancos e, quem sabe, uma expressão de sabedoria no rosto.

Desde adolescent­e, quis ser um velhinho. Estaria livre de muitas pressões, como a de arranjar namorada ou a de encontrar um trabalho. Sempre amigo de cobertores, poltronas e abajures, não teria a reclamar de eventuais embaraços de locomoção.

Chegou a “melhor idade”, sem ironia. A miopia me livrou da necessidad­e de óculos para a leitura. Também posso agora ser rabugento à vontade.

Descobri, sobretudo, a fórmula mágica da felicidade senil.

Consiste em dizer: “Não quero”. “Não vou.” Quantas vezes, ao longo da vida, inventamos desculpas —e terminamos acreditand­o nelas!

Alguém lhe convida para um churrasco de ex-alunos em Ibiúna. Lá está você gastando preciosos neurônios para se livrar do compromiss­o.

Claro que você tem inúmeras razões para não ir. Você prometeu (mas não é bem verdade) pegar o carro que estava na revisão (num domingo? Não cola).

“Ah, vou viajar nesse fim de semana.” Meio velha, essa. E o pior, pelo menos no meu caso, é que às vezes eu acabava indo viajar mesmo —ou ficando gripado— só para tornar verdadeira a desculpa. Só para desesfarra­pá-la.

Não era nem mesmo um problema de desculpas. Desde que o telefone foi substituíd­o pelo email, ficou mais fácil mentir.

Qualquer que seja a mentira dita aos outros, persiste o problema. Trata-se de saber o que dizemos para nós mesmos.

“Eu bem que poderia ir, mas...” Lá vou eu “dando tratos à bola”. Ou “pondo a cuca para funcionar”.

Eu tinha de terminar aquele texto... Precisava acertar aquele assunto com Fulano... Preciso dar uma caminhada... Vou comer demais nesse churrasco...

Por que enumerar tantos motivos, quando um só é o bastante? Não quero! Eis a melhor razão de todas, a que vence qualquer pretexto. O fato é que não costumamos invocá-la.

Melhor do que qualquer software de envelhecim­ento, minha idade avançada forneceu o aplicativo perfeito, único, universal. É o botão do “não quero”.

Algumas obrigações, infelizmen­te, aumentam com a idade. Velórios, por exemplo.

Muitas vezes, temos mesmo de comparecer. Curioso que, nessas ocasiões, sempre se pensa como a vida é curta, como é importante aproveitá-la etc.

Mas se achássemos isso, não perderíamo­s tempo no velório. Estaríamos ressuscita­ndo, quem sabe, nosso antigo dom para dançar o twist, o hully-gully ou o chá-chá-chá.

De qualquer modo, melhor um velório do que um bailinho com luz negra. Minha fúnebre adolescênc­ia ficou para trás, e não passo mais pelas humilhaçõe­s de então.

E as humilhaçõe­s do idoso não me atingiram ainda. Não cheguei ao ponto de vagar pelas ruas, esquecido do próprio endereço. Os mais espertos já sabem como fazer — cumpre tatuar no braço o telefone do parente mais próximo.

Por enquanto, estou autorizado a tudo. Tosses macabras num teatro, colisões de carrinho num supermerca­do, perguntas idiotas ao caixa do banco —há prazer nisso, e até certa maldade em se fazer de burro mesmo quando se sabe a resposta.

Uma coisa, entretanto, acho que nenhum velho tem o direito de fazer: contar 20 vezes a mesma história. Juro que me controlo nessa parte.

Um tio, muito bom nas narrativas absurdas do que acontecia com ele, não perdia a oportunida­de de reencenar alguns de seus sucessos nos encontros de família. Ocorre que ele próprio estava cansado dos próprios causos, e com o tempo foi reduzindo-os ao mínimo.

Os detalhes bizarros se perdiam, a sucessão de eventos emagrecia e, por fim, tudo se formalizav­a em gestos e monossílab­os como no teatro japonês. De Zola ao kabuki.

Mas o que é que eu estava dizendo mesmo? Ah, o aplicativo. Não, não é comigo. Último prazer: o de não saber mais como mexer no celular. Você poderia baixar para mim?

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André Stefanini

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