Falta sensibilizar juiz sobre mulher, diz estudo do CNJ
Legislação, que completa 13 anos e foi eficaz em salvar vidas, ainda tropeça em série de gargalos
A Lei Maria da Penha já é uma das mais conhecidas, mas ainda encontra gargalos como a falta de sensibilidade de agentes públicos e a alocação de vítimas e agressores na mesma sala antes de audiências. A avaliação é de pesquisa qualitativa feita pelo CNJ junto com o Ipea.
“O que acontecia para ele fazer isso?”, pergunta um promotor a uma mulher vítima de violência doméstica. “Ele é muito machista”, ela responde. “Tu dava motivo?”, questiona o advogado do agressor. “Não”, diz ela. “Tu tinha outro caso conjugal?”, insiste o advogado. “Não, como eu teria se ele nem me deixava sair de casa?”. “Temos que cuidar quem colocamos para dentro de casa”, emenda o juiz.
O diálogo é parte de audiência judicial da Lei Maria da Penha que consta de pesquisa qualitativa feita pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) em cooperação com o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) sobre o papel do Judiciário no enfrentamento à violência doméstica.
De acordo com o Atlas da Violência, do Ipea, a morte violenta intencional de mulheres no ambiente doméstico cresceu 17% em cinco anos.
No mesmo período, de 2012 a 2017, o assassinato de mulheres nas ruas diminuiu 3%.
No caso relatado acima, um entre dezenas no estudo, as pesquisadoras apontam que houve responsabilização da mulher pela violência sofrida.
A pesquisa acompanhou audiências em 12 locais do país (mantidos em sigilo para impediraidentificaçãodosenvolvidos) e ouviu cerca de 150 pessoas, entre juízes, promotores, vítimas e outros, em 2018.
O CNJ divulgou o estudo nesta quinta (8), por ocasião dos 13 anos da Lei Maria da Penha, celebrados na véspera.
A lei, na avaliação do órgão, já é uma das mais conhecidas no Brasil. Apesar disso, encontra vários gargalos: a falta de sensibilidade dos agentes públicos, a alocação de vítimas e agressores numa mesma sala antes das audiências e a dificuldade de as mulheres entenderem o processo.
“A maioria das mulheres, quando falava que conhecia a Lei Maria da Penha, é porque ouviu na mídia, na novela, no jornal. Você está mudando uma estrutura social para mudar uma cultura sobre o que é violência contra a mulher dentro de casa”, diz Elisa Sardão Colares, pesquisadora do Departamento de Pesquisas Judiciárias do CNJ.
“Ela [a lei] mais do que pegou, ela realmente está alterando estruturas. Em 13 anos é muita coisa, mas ainda tem muita coisa por fazer.”
Um dos problemas apontados é o ambiente físico das unidades do Judiciário. Há 134 varas ou juizados especializados em violência doméstica em um país com cerca de 2.400 comarcas. Nas varas não especializadas, onde casos de agressão dividem espaço com os de roubo, tráfico e homicídio, faltam recursos para reformas, a fim de impedir, por exemplo, que a vítima e o agressor fiquem em contato até serem chamados pelo juiz —situação considerada constrangedora.
Pouco mais de um terço (37%) dos processos de violência doméstica em tramitação em 2018 estavam em varas exclusivas, segundo dado inédito do CNJ. Esse índice foi apurado pela primeira vez, o que não permite comparar com a situação dos anos anteriores.
Uma reclamação recorrente de entrevistadas é que, na maioria dos casos, elas saem das audiências sem saber do resultado. Isso porque a maior parte dos juízes, segundo o estudo, não dá a sentença na audiência por ter pressa para atender à alta demanda.
As mulheres saem sem saber se os agressores serão presos ou soltos, ou se a medida protetiva —que impedia a aproximação deles— continua valendo.
A violência doméstica é um dos temas eleitos como prioritários pelo presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli.
As pesquisadoras do Ipea que foram a campo anotaram, no relatório da pesquisa, que “em todas as audiências observadas, o magistrado não demonstrou interesse na fala das mulheres, tal que, enquanto [as vítimas] respondiam aos questionamentos da promotora, o juiz ficava concentrado no celular e saía da sala”.
“Em duas das audiências acompanhadas na pesquisa, inclusive, o magistrado chegou a se ausentar durante praticamente toda a fala da mulher”, observa o estudo.
Um ponto positivo identificado é que as medidas protetivas têm sido céleres: quase sempre são determinadas dentro de 48 horas. Esse é o aspecto da Lei Maria da Penha mais elogiado pelas mulheres, de acordo com o CNJ.
“Ele só parou de aperrear devido à medida protetiva, simplesmente isso. Se perguntarem se eu quero continuar com a medida protetiva, eu vou dizer: ‘Quero!’. Eu não paro, porque sei que ele tem medo de cadeia, ele é covarde”, disse uma das entrevistadas.
A demora dos processos é alvo de queixas. “Por que demora tanto? Depois de três anos, o processo começou agora. Se fosse para ele me matar, ele tinha matado”, disse outra entrevistada.
O número de novos processos de violência doméstica que chegou à Justiça cresceu de 402.006, em 2016, para 507.984 em 2018 (26,4% a mais), segundo o órgão.
“As mulheres hoje estão denunciando muito mais. Esse é um aspecto importante, esse aumento no número de casos não é à toa, é as pessoas acreditando na possibilidade de que essa lei funcione”, avalia a pesquisadora do CNJ Danielly Queirós.