Czar do século 21, Putin vê abismo após duas décadas de poder
Presidente que definiu versão moderna da Rússia enfrenta questionamentos e sucessão
Na virada de 1999 para 2000, o mundo esperava um colapso tecnológico apocalíptico. Era o “bug do milênio”.
Em vez disso, o que importa hoje daquele 31 de dezembro foi a bombástica renúncia do presidente russo, Boris Ielstin. Ao lado de sua figura congestionada e etílica, emergia um rosto novo, magro e algo assustadiço: o do seu sucessor indicado, Vladimir Vladimir ovitchP ut in.
Mas o poder real de Putin começara poucos meses antes, em 9 de agosto de 1999. Naquele dia, Ielstin transformava um desconhecido ex-espião da KGB soviética em primeiroministro do conturbado país.
Ele chegara lá por conexões diversas de seu tempo como burocrata liberal em São Petersburgo, com uma providencial chefia por um ano do FSB, principal sucessora da KGB.
Ganhou carta branca para subjugar a rebelde Tchetchênia, o que fez com eficácia fria. Depois de diversas experiências, Ieltsin tinha achado um herdeiro que não faria uma caça às bruxas sobre seu corrupto governo.
Vinte anos depois, Putin, 66, segue em forma e treinando judô, mas mais velho e sob efeito de tratamentos estéticos que lhe plastificam expressões.
Para admiradores, o homem que tirou seu país de uma crise terminal, reconquistou o espaço da Rússia na política mundial, um patriota fervoroso.
Para detratores, um cínico que fomenta o expansionismo russo em áreas que já foram do império dos Romá no veda União Soviética, cujos opositores morrem de forma suspeita e, pior, um militarista que pode levar o mundo à destruição.
Há exageros nas duas categorias, e várias verdades intermediárias, mas o fato é que Putin recolocou a Rússia no papel de ator global e presidiu sobre uma recuperação fenomenal após a década de terra arrasada que herdou. Definiu a imagem de seu país no século 21, para bem e para mal.
Foi assim eleito presidente em 2000,2004,2012 e 2018, sem deixar o poder ao retornar para uma pantomima como premiê de 2008 a 2012, quando seu pupilo Dmitri Medve devera o presidente nominal.
Mudou alei para estender o mandato presidencial para seis anos e, agora, se vê diante do desafio final: o que fazer com o fim constitucional de seu mandato, em 2024, quando terá quase 72 anos e só poderá concorrera outra reeleição seisa nos depois.
Ao longo de duas décadas de poder, Putin enfrentou crises e questionamentos, mas é um caso único de sucesso.
Sua falta de apreço ao liberalismo ocidental lhe vale a acusação de ser ditador, quando uma autocracia ao estilo do czar que dizem ser seu predileto, Nicolau 1º, pareça ser algo mais adequado.
O imperador foi responsável por diferenciar uma Rússia que buscava ser ocidentalizada do resto da Europa, quando as potências então amigas se voltaram contra os Románov e aliaram-se aos otomanos na Guerra da Crimeia (1853-56).
Hoje, contudo, há sinais sobre os limites desse poder e um abismo cresce à frente de Putin. As ruas de Moscou respondem ao cansaço da fossilização do sistema político.
Já são três sábados seguidos de protestos com milhares de detidos devido à falta de transparência no pleito local da capital em setembro, e este sábado (10) deverá ser mais um dia de confronto.
Ainda faltam nomes oposicionistas viáveis nacionalmente. Para Alexei Kolesnikov, do Centro Carnegie de Moscou, esse cenário tem mais a ver com uma paralisia da sociedade, embora sempre possa surgir uma figura exógena como o comediante Volodimir Zelenski, que saiu do nada para a liderança da vizinha Ucrânia.
Pode ser, mas há entraves. Putin não é popular só porque armou um arcabouço em que as elites econômicas do país se sentem atendidas e os grupos de poder rivais no Kremlin se digladiam sob os auspícios do czar —no caso, do presidente.
Putin tem resultado para apresentar. Em 1999, o PIB per capita do país, considerando a paridade de poder de compra, era de US$ 1.300. Hoje, é de US$ 11 mil (cerca de R$ 43,1 mil).
Menos do que os US$ 16 mil de 2013, mas é preciso considerar o tombo russo desde então, com sanções ocidentais e a baixa no preço do petróleo que move as receitas do governo.
Há 20 anos, após experimentar uma queda na renda de cerca de 60% depois do fim da União Soviética, em 1991, o salário médio mensal russo era de 1.500 rublos (R$ 90), em valores corrigidos.
Em 2019, a média é de 55 mil rublos (R$ 3.310). A inflação, que tinha atingido 2.333% ao mês em dezembro de 1992, caiu de 36,6% anuais em 1999 para 4,6% ao ano em 2019.
A expectativa de vida subiu de 65 para 72 anos, e as pessoas na pobreza absoluta saíram de 29% para 13%.
Esses dados do Banco Mundial e do Serviço Federal de Estatísticas da Rússia ajudam a entender o fenômeno Vladimir Putin, mas não é só.
“Ele se conectou com a população russa, que precisa de um líder”, diz Sergei Markov, estrategista político com grande influência nos primeiros anos de Putin no poder.
O que não exime o presidente de culpas. O país segue com dependência de hidrocarbonetos para fechar suas contas, e as alianças pontuais de Putin com a Arábia Saudita para tentar manipular preços mundiais passam por aí.
E as sanções que dificultam rodar crédito no país têm a ver com política: são derivadas do senso de oportunidade de Putin, que age baseado no temor real de que o Ocidente quer lhe cercar e minar.
A guerra que o Kremlin travou com a Geórgia em 2008 e a anexação da Crimeia da Ucrânia, que levou às sanções em 2014, foram reações à aproximação de vizinhos que a Rússia considera sob sua área de influência com os ocidentais.
A luta do presidente também é cultural. “Nunca tivemos laços tão fortes e bons como agora”, diz Vladimir Legoia, portavoz do patriarca Cirilo, o cabeça da Igreja Ortodoxa Russa.
Não por acaso, essa proximidade de Putin com a renovação religiosa russa fornece também áreas de atrito, como a prisão das roqueiras do grupo Pussy Riot lembra.
Um dos precursores da atual onda de protestos foi o movimento de moradores de Iekaterimburgo contra a construção de mais uma grande igreja num parque da cidade em que os bolcheviques liquidaram os Románov em 1918.
“A visão da Rússia grande já não é suficiente. As pessoas querem mais”, diz Denis Volkov, do instituto de pesquisas independente Levada. Tanto é assim que a reforma previdenciária de Putin, tema bem doméstico, derrubou sua aprovação de quase 90% para 68% — confortáveis, mas nem tanto. O crescimento do PIB e da renda estão estagnados após a recessão de 2015 e 2016, e não parece haver saída mágica à mão.
Putin segue mestre na política externa. Modernizou a duras penas fiscais suas Forças Armadas, bastante capazes em áreas específicas, além de ter renovado sua dissuasão nuclear com novas armas.
Logrou tanto esterilizar o campo para a ampliação da Otan (aliança militar liderada pelos EUA) com as guerras na Geórgia e na Ucrânia quanto ocupou espaço no Oriente Médio, ao intervir e salvar a ditadura síria em guerra civil.
Sua imagem de pária no Ocidente, acusado de mandar matar dissidentes como espiões que foram envenenados ou jornalistas abatidos a tiros em Moscou, foi algo suavizada com a Copa do Mundo de 2018, ainda que não muito.
Mesmo com tais vitórias, enfraquecido economicamente, Putin tem solidificado laços com a China comunista. Há poucas semanas, os países concordaram em fazer um amplo pacto militar.
Quando isso aconteceu no passado, com Napoleão em 1807 e Hitler em 1939, o resultado foi invasão e guerra. Hoje, pode ser isso economicamente. Por outro lado, é de Pequim que pode sair uma das soluções para o problema sucessório de Putin.
Lá, a ditadura concedeu a Xi Jinping uma extensão quase indefinida de seu mandato, antes limitado a dois termos.
A “saída Xi”, a escolha de um novo herdeiro ou uma Presidência sobre Rússia e Belarus parecem cartas na mesa. Mesmo encarando um abismo, apenas Putin sabe qual é o próximo lance. Nisso ele segue imbatível, goste-se ou não do czar do século 21.