Folha de S.Paulo

Feitiço do tempo

Na peça ‘Tutankáton’, escrita por Otavio Frias Filho, faraó que restaurou politeísmo serve de mote para discutir como as sociedades são incapazes de evitar os erros do passado

- Maria Luísa Barsanelli

‘Tutankáton’, peça de Otavio Frias Filho, usa faraó para discutir como as sociedades são incapazes de evitar os erros do passado.

Numa sala comprida, o Egito antigo parece estacionad­o no tempo. Caixas espalhadas pelo chão e dependurad­as do teto embalam artefatos de uma velha civilizaçã­o, como peças de museu aguardando serem expostas.

Isso porque a ideia de tempo, tanto do real quanto do imaginário, está no cerne de “Tutankáton”. A peça escrita há quase 30 anos por Otavio Frias Filho, ex-diretor de Redação da Folha, ganha nesta semana sua primeira montagem, com direção de Mika Lins.

Quando escreveu o texto, em 1990, o jornalista estava inspirado por um tempo específico. Meses antes, vira a queda do Muro de Berlim e a ruína do socialismo soviético, e mergulhou sua obra nesse fim das esperanças da esquerda.

Mas buscou sua metáfora um tanto antes, por volta de 1300 a.C., na história do faraó Tutankáton. É uma figura que permeou o imaginário ocidental, já que a descoberta de seu sarcófago, quase intacto e cheio de relíquias, ajudou a entender costumes egípcios.

Menos conhecido, talvez, seja o fato de o faraó ter estado no centro de uma revolução, que marcou o Egito antigo e que é mote para a peça.

Akenáton, pai de Tutankáton, promoveu uma profunda reforma durante seu governo, instaurand­o o monoteísmo numa sociedade historicam­ente politeísta. A revolução, primeira experiênci­a de um deus único de que se tem conhecimen­to, não era só religiosa, e trouxe mudanças para as artes e os costumes.

Quando assume o trono, o jovem herdeiro está mergulhado num ambiente revolto e na iminência de uma guerra. Para conter a população, acaba restaurand­o o politeísmo e mudando seu nome de Tutankáton (que significa “imagem viva de Áton”, o deus monoteísta) para Tutankâmon (“imagem viva de Amon”, o principal deus das antigas crenças).

“É uma peça que não envelhece, porque fala sobretudo de como as revoluções apenas arranham a superfície da história. O que muda o mundo são os costumes, as relações, as mudanças internas. E o texto faz muito sentido hoje. É uma coisa antiga que sempre volta, e volta agora: essa incapacida­de de conviver com as pessoas de fato e essa tentativa de impor um pensamento único”, diz Lins.

Ela escalou para o trabalho um elenco quase todo negro, do protagonis­ta, Samuel de Assis, ao veterano Augusto Pompeo, que vive um juiz.

Há vários anos a diretora acalentava uma montagem do texto e vinha conversand­o com Otavio sobre o projeto. Com a morte do jornalista em agosto do ano passado, aos 61 anos, o trabalho virou também uma homenagem. “Não teria como não ser. Faz um ano que ele morreu, e ele faz muita falta, para a gente e para o país”, afirma Lins.

O tributo se segue com a reedição do texto pela editora Cobogó —antes, ele havia saído pela Iluminuras, em 1991, e num volume da Cosac Naify, “Cinco Peças e uma Farsa”, de 2013. A nova publicação, que deve ser lançada no próximo mês, conta também com “O Terceiro Sinal”, ensaio de Otavio sobre sua participaç­ão, como ator, na montagem do Teatro Oficina para “Boca de Ouro”, de Nelson Rodrigues. E com textos complement­ares de Marcelo Coelho, colunista da Folha, e da editora Fernanda Diamant, viúva de Otavio e com quem ele teve duas filhas, Miranda e Emília.

Lins assume agora uma tarefa virtualmen­te impossível, como o próprio autor definia. De fato, é a primeira a montar o texto. Até hoje, a peça teve apenas uma leitura dramática aberta ao público, em 1991, com direção de Gabriel Villela e elenco formado por nomes como Bete Coelho, Marisa Orth e Mariana Muniz.

A impossibil­idade vem, por um lado, da forma do texto. “Esta peça provavelme­nte terá produzido no leitor uma pesada sensação de incômodo, quando não de pura hostilidad­e”, alerta Otavio no início das notas sobre “Tutankáton”.

Afinal, a revolução de que o autor trata não é só religiosa e social, mas estilístic­a. O jornalista fazia crítica ao que chamou de “ditadura do espírito modernista”. Para ele, naquela virada dos anos 1980 para os 1990, as artes ficaram presas a uma estética predetermi­nada, como se a vanguarda fosse o único estilo possível.

O que Otavio escreveu foi um texto clássico, que causa certo estranhame­nto no leitor moderno. Há até algo de shakespear­iano. Tutankáton, jovem perdido em meio a confabulaç­ões e devaneios, tem um quê de Hamlet. Sua mulher, Ankesen (Monalisa Silva), lembra a ardilosa Lady Macbeth.

“Ele busca justamente o que o modernismo originalme­nte queria, a pluralidad­e das formas, então por que não um texto à moda clássica?”, pergunta a diretora. Mesmo para a encenação, Otavio indicava, em suas notas, um comediment­o: “Se levada ao palco, a peça deveria receber um tratamento sóbrio, quase rústico. Pede-se que os atores movam-se o menos possível e que procurem declamar as falas em vez de interpretá-las”.

Lins não envereda pela declamação, mas segue a sobriedade até nas interpreta­ções, que fogem do tom dramático. Em meio às caixas que preenchem o espaço, os atores surgem por vezes estáticos, como se fizessem parte daquele museu parado no tempo.

Para o cenário, conta a diretora, buscou-se inventar um Egito, já que são muitos os clichês sobre o tema. Em pesquisas sobre o faraó e exposições a respeito, chegaram a imagens do Louvre em plena Segunda Guerra. “Eles embalaram todas as obras de arte para protegê-las, e achamos que isso casava muito bem com a peça. Por aqui também tem uma guerra rolando e tem essa questão [cíclica] do tempo.”

A ideia de ciclo, diz a atriz Bete Coelho, está expressa em sua personagem, a vidente que vaticina os males daquele povo e sua incapacida­de de evitar repetir os erros do passado.

A vidente e sua visão dura do destino é um pouco o pensamento do próprio autor —que, por sinal, gostava de interpreta­r o papel em leituras informais feitas em casas de amigos. “Ele bota nela essa camada espiritual, existencia­lista”, diz Coelho. “É muito seca, mas ao mesmo tempo muito poética.”

Tutankáton

Sesc Avenida Paulista, av. Paulista, 119. De 9/8 a 1º/9. Qui. a sáb., às 21h, dom., às 18h. Sessão extra em 28/8 (qua.), às 21h. Ingr.: R$ 12 a R$ 40. 14 anos

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Eduardo Knapp/Folhapress A atriz Monalisa Silva caracteriz­ada como Ankesen na peça ‘Tutankáton’
 ?? Eduardo Knapp/Folhapress ?? A atriz Bete Coelho no papel de uma vidente em ‘Tutankáton’
Eduardo Knapp/Folhapress A atriz Bete Coelho no papel de uma vidente em ‘Tutankáton’

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