Folha de S.Paulo

Você não é tudo isso

O outro não aguentou o quanto eu sou autêntico e bem-sucedido

- Tati Bernardi Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”

Contratei um roteirista. No começo, ele trouxe várias ideias legais e parecia empenhado, mas, em menos de 15 dias, começou adar defeito. Na entrevista, eu tinha deixa dobem clara a minha preguiça em relação aos típicos “millennial­s superangus­tiados de família com dinheiro”.

O tipo que ainda não se encontrou na vida com mais de 30 ano seque, ao ser confrontad­o com alguma responsabi­lidade ou incumbênci­a mais chatinha, responde pérolas (aristocrát­icas disfarçada­s de aristotéli­cas) como: “Acho que minha verdade não está nesse trabalho”; ou ainda: “Desculpe, achei que gostava de comédia, mas vou voltar para as minhas traduções de haicai para o russo”.

Apesar deter nascidona década de 1970 e de não ter família rica, eu também fui bastante mimada e demorei a ganhar algum dinheiro. Eu também trocava de emprego acada dois meses, porque aquelas pessoas e aquele lugar e aquele serviço não me serviam. Era tão doloroso encarar que eu que não prestava para nada etão mais fácil sair por cima e menospreza­r todo mundo!

Mas, pouco antes dos 30 anos, eu resolvi parar com essa palhaçada e então, por isso, a minha profunda fadiga com quem, já bastante adulto, se comporta como um poeta tuberculos­o do século 19 acada chance deter um emprego rea lenão um“trabalho sonhado”. Eu tenho emprego e tenho trabalho. Eu posso bancar meus devaneios pouco monetizado­s, pois sou uma filhinha de papai de mim mesma.

Eu tenho, sobretudo, bode de quem busca “o trabalho perfeito” usando o dinheiro do emprego imperfeito de pais ou avós batalhador­es. Sorry, não vem cagar regra pra mim com esse papinho de “a minha verdade, a minha arte, a minha angústia, a minha pós em proxenetas do romantismo inglês ”. Prefiro o coxinha honesto que pega agranada família evirainf lu en cer de hotel de luxo ao intelectua­l riquinho blasé que nunca vai trabalhar porque não precisa, mas chama o emprego dos outros de “hmmm, não sei, não é muito a minha”. Vai pagar o plano de saúde da família inteira depois me liga.

A mesma impotência camuflada por arrogância acomete aqueles solteiros chatos, egoístas, que não deixam ninguém falar, os“auto monotemáti­cos” que, ao levar um pé na bunda, vêm com o clássico papinho de “o outro não aguentou o quanto eu sou autêntico, bem-sucedido e tenho personalid­ade”. Talvez o outro não tenha aguentado o quanto você é casado com você mesmo e prefira alguém livre.

E aqui, como me é de costume, faço uma crítica a mim. Foram mais de 20 anos de vida erótica por esse Brasil, culpando todos os moços por não aguentarem essa mulher incrível. Coitada! Se eu sou insuportáv­el agora, depois de doses cavalares de terapia e de 48 horas com contração uterina na tentativa de parir como mandava a professora do curso humanizado, fico imaginando a vaca que eu era quando prolonguei meus 16 anos por mais 16 anos. Se eu tivesse como mandar um WhatsApp do túnel do tempo para a Tatinha de outrora, diria: “Aff, você não é tudo isso!”.

Por isso, se você passou dos 30 e é tão especial, sensível, angustiado e artista que nenhum emprego ou pessoa lhe serve, pensar que você não é tudo isso talvez resolva parte dos seus problemas; porém, sem dúvida, abre as portas para outros muito maiores, os quais você, mesmo sendo um idiota, sabiamente dá um jeito de evitar.

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