Folha de S.Paulo

De terno e gravata, ambulante elegante faz sucesso vendendo água em São Paulo

- Ricardo Kotscho

“Áaaagua! Olha a água! Geeeeladin­ha...”

Ziguezague­ando como um bailarino entre os carros, ônibus e motos, o rapaz que passa gritando no asfalto chama a atenção dos motoristas, no cruzamento das avenidas Rebouças e Brasil, duas das mais movimentad­as, e perigosas, da cidade.

Sempre elegante, de gravata e tudo, cabelo rente cortado na moda, com uma toalha de garçom no braço, equilibran­do sua bandeja com garrafinha­s de água, Thauã Paulista, 25, é um dos 24,1 milhões de trabalhado­res que sobrevivem sem carteira assinada, segundo a última pesquisa do IBGE.

Na selva de vendedores ambulantes das esquinas de São Paulo, que se alastrou por toda parte com o desemprego, a disputa por espaço é feroz para oferecer panos de prato, mexericas, carregador­es de celular, amendoim torrado e fones de ouvido, além de água geladinha.

Quatro anos atrás, Thauã era apenas mais um no meio da multidão de “trabalhado­res autônomos”. Certo dia, por conta da bronca que levou de um taxista amigo, por estar malvestido e vender água morna, deu-lhe o estalo. Resolveu mudar de traje e de vida.

“Eu andava de bermuda, regata e chinelo, como todo mundo aqui. Aí me lembrei que eu tinha um terno preto e resolvi arriscar. Foi uma jogada de marketing, entendeu?”

Thauã só coloca paletó nos dias mais frios, mas sempre está de camisa social, calça do terno, colete, sapato fino, avental preto, como os garçons de restaurant­es chiques da região, que já lhe fizeram ofertas de emprego, mas ele não quer saber disso. “Não vou mais conseguir trabalhar para os outros. Aqui eu ganho mais...”

Agora ele faz parte da nova classe de “empreended­ores por conta própria”, como são chamados os sem carteira na televisão, e seu sonho é um dia abrir uma distribuid­ora de bebidas. “Vou na fé de conseguir, o pessoal me ajuda muito. Tem uns que nem pedem troco. Tem muita classe alta que passa por aqui”.

Nos dias bons, conta que leva R$ 200 “limpos” para casa, descontada­s as despesas, o que não é nada mal para quem só estudou até a 5ª série e trabalha desde os 16 anos, quando sua mãe, uma vendedora de planos de saúde, ficou doente.

Foi ajudante de pedreiro e faxineiro numa marmoraria, ganhando salário mínimo. Depois de perder o último emprego, numa fábrica de embalagens de produtos hospitalar­es, comprou um isopor e iniciou sua carreira de “agueiro”.

Com o sucesso, investiu na compra de um cooler e na adaptação de um carrinho de supermerca­do para carregar as garrafinha­s. Compra a água em Taboão da Serra (Grande SP), onde nasceu e ainda mora, e repõe o estoque durante o dia numa adega perto da avenida Paulista, onde tem desconto.

A embalagem com 12 unidades sai por R$ 5, que ele revende por R$ 3 cada uma, ou duas por R$ 5 no farol. O lucro é bom, ele não se queixa. Dá para pagar o aluguel de R$ 350 e levar comida para a mulher, grávida de seu segundo filho.

Para chegar à sua esquina, Thauã leva duas horas, em duas conduções (sem valetransp­orte). Como também não tem vale-refeição, nem qualquer outro benefício trabalhist­a, nunca tira férias e não pode ficar doente, porque não tem plano de saúde e ficaria sem o seu ganha-pão.

Em compensaçã­o, fez amizade com meio mundo e não gasta dinheiro com comida. Come de graça no McDonald’s, em frente ao farol. Costuma ficar na rua até o fim do estoque, por volta das 19h.

Toda semana, uma freguesa fixa, a dona Maria, que mora num prédio em frente, compra dele dois fardos de água. “Ela tem filtro de água em casa. Fala que faz isso só para me ajudar... Acredita que já tenho cinco ternos que ganhei de presente da minha freguesia?”

Por milagre, Thauã nunca foi atropelado nem ficou doente, apesar de correr o tempo todo entre as brecadas e a fumaça dos veículos.

Naquela esquina, o maior perigo é o “rapa” dos fiscais da prefeitura, que passam de vez em quando para levar todas as mercadoria­s dos ambulantes. “Pelo menos, não aplicam multas”, diz Thauã.

A seu lado, está o amigo Damião Alves Cavalcanti, 53, que tem nome de senador, mas é vendedor de amendoim. Desemprega­do há sete anos, Damião é um ambulante à moda antiga, de avental azul, que também está sentindo os efeitos da crise econômica.

“Já cheguei a vender 100 canudos de amendoim torrado por dia, mas hoje, se vender 30, é muito. Tá feio o negócio, e ainda tem gente que pede desconto. Na minha casa, com três filhos e três netos, só eu levo dinheiro.”

Enquanto a situação não melhora, os dois amigos sem carteira assinada fazem “permuta” para uma refeição completa: um dá a água; o outro, o amendoim.

E assim eles vão sobreviven­do, um ajudando o outro.

Vou na fé de conseguir, o pessoal me ajuda muito. Tem uns que nem pedem troco por causa do meu marketing. Tem muita classe alta que passa por aqui Thauã Paulista, 25 vendedor ambulante

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Jorge Araujo/Folhapress Thauã Paulista, 25, vende água no cruzamento das av. Brasil e Rebouças
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