Folha de S.Paulo

Espetáculo une Suassuna a Dercy Gonçalves

Montagem de ‘Auto da Compadecid­a’ de Gabriel Villela recorre ao teatro de revista para falar do Brasil contemporâ­neo

- Maria Luísa Barsanelli

Chicó e João Grilo, protagonis­tas de “Auto da Compadecid­a”, são por síntese a representa­ção do herói mítico e sem caráter brasileiro. Desembaraç­am-se emmeio à seca eà miséria do sertão com uma certa malandrage­m, levam a dureza de forma cômica, como palhaços no picadeiro.

Eéa tradição circense, aliada a outras linguagens populares, quedá o tom da montagem do diretor Gabriel Vil lela para a obra de Ariano Suassuna, que estreia em São Paulo depois de passar por festivais.

Villela procurou a companhia belo-horizontin­a Maria Cutia —nascida há pouco mais de uma década no ambiente do Galpão Cine Horto, do Grupo Galpão—, habituada a uma linguagem mambembe e de rua. O direto raca baradel era biografia de Dercy Gonçalves, escrita por Maria Adelaide Amaral, e queria de algum modo traduzir o espírito herético da comediante.

“Dercy foi uma grande atriz e pedagoga. Eu me questionav­a se ela sabia que inaugurava um método. Porque existe um método picaresco no que fazia, que está na fundação da nossa linguagem popular contemporâ­nea”, diz o encenador.

Chegaram a cogitar uma montagem de “Mistero Buffo”, sátira do italiano Dario F o, mas, coma turbulênci­a política do país, decidiram se voltara um atrama mais brasileira. Vi ramem Suassuna a alegoria que procuravam.

Em cena, continua a história criada em meados dos anos 1950 pelo paraibano, que costurou a literatura de cordel, a comédia e o barroco católico brasileiro. Na aventura milagrosa de João Grilo e Chicó, vagueia-se pelo sertão numa epopeia que mistura o cangaço e figuras religiosas, como Jesus, a Virgem Maria e o Diabo.

A esse cenários e soma outra linguagem bastante popular brasileira eà qual Dercyes teve intimament­e ligada, ado teatro de revista. O gênero musical, marcado por paródias do noticiário, serviu para inserir comentário­s sobre política.

Eles surgem pincelados em alguns momentos, sempre atrelados às histórias dos personagen­s e atualizado­s, ao longo das sessões, segundo o noticiário. “O grupo revê sempre, porque a incontinên­cia verbal deste governo é muito grande”, comenta Villela. “Mas tem sempre um escracho, algo similar a Dercy e à revista.”

A musicalida­de também surge com força, inspirada, em especial, pela tropicália. “Achei que precisávam­os buscar uma música com mais raciocínio crítico”, explica o diretor. Assim, surgem canções como “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso (que marca a entrada dos personagen­s no céu), e “América do Sul”, conhecida na voz de Ney Matogrosso.

De certo modo, é uma montagem que se une a outras tantas recentes, como “As Cangaceira­s”, musical com dramaturgi­a de Newton Moreno, e “A Invenção do Nordeste”, do Grupo Carmin. Nelas, é representa­do um sertão político, não distante das alegorias, mas desamarrad­o dos estereótip­os.

No caso deste “Auto”, há uma mistura de Minas Gerais, de onde vêm elenco e diretor, e Pernambuco, onde Suassuna viveu boa parte da vida.

Villela não deixa de colocar em cena a estética barroca que costuma apresentar. Muito, aliás, veio de trabalhos antigos. Como o projeto iniciou quase sem verba (o grupo chegou a fazer uma campanha de financiame­nto coletivo de R$ 40 mil), foram para o sítio do diretor em sua cidade natal, Carmo do Rio Claro, no sul de Minas. Ali recolheram material e reciclaram cenários e figurinos antigos.

A eles somou-se outro elemento, a lama. “Vem na nossa pele a tragédia anunciada de Brumadinho e tantas outras que podem acontecer”, afirma o encenador, lembrando o rompimento da barragem mineira, que deixou mais de 200 mortos no início do ano.

Villela replicou o tom da lama de Brumadinho, que é mais ferruginos­a, segundo ele. Com a cor, pincelou parte dos figurinos, em especial o dos dois protagonis­tas, marcados pela secura do sertão.

Afinal, as linguagens de Villela e Suassuna, cada qual com o seu sertão, não são tão distantes. Tanto que o escritor, quando viu o “Romeu e Julieta” que o diretor montou com o Grupo Galpão no início dos anos 1990, chegou a bradar: “Fui eu que dirigi esse espetáculo”, lembra Villela.

Auto da Compadecid­a

Sesc Pompeia, r. Clélia, 93. Até 1º/9. Qui. a sáb., às 21h, dom., às 18h. Ingr.: R$ 40. Livre.

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Tati Motta/Divulgação Cena do espetáculo ‘Auto da Compadecid­a’

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