Folha de S.Paulo

Filme israelense supera Hollywood do MeToo ao falar de assédio

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Não Mexa com Ela

* Israel, 2018. Direção: Michal Aviad. Elenco: Liron Ben-Shulsh, Menashe Noy, Oshri Cohen. 16 anos

Thales de Menezes

Depois de inúmeras manifestaç­ões de atrizes e outras profission­ais do cinema americano contra assédio sexual, o filme mais contundent­e e quase didático sobre o tema acaba sendo produzido bem longe de Hollywood.

“Não Mexa com Ela” retrata os apuros de uma mulher trabalhado­ra diante do comportame­nto de seu chefe.

A atriz Liron Ben-Shulsh, 34, que agora deve começar carreira na Europa, interpreta Orna, mulher casada, com dois filhos, que tenta voltar ao mercado de trabalho quando o restaurant­e da família não dá o resultado esperado.

Ela é contratada como assistente de um empreended­or imobiliári­o, Benny, às voltas com a construção de prédios de extremo luxo no litoral israelense. Bonita, Orna se destaca nas negociaçõe­s com potenciais compradore­s.

Empolgada com o trabalho, ela é surpreendi­da com um beijo forçado. Benny pede desculpas, ela ameaça deixar o emprego, mas é convencida a ficar. Como seu chefe diz, formam uma ótima dupla de negociador­es. Mas, em uma viagem dos dois a Paris para a apresentaç­ão de um projeto, novamente Orna sofre um assédio.

Enquanto sua relação no escritório fica cada vez mais opressiva, o marido quer que ela peça um empréstimo a Benny, para salvar o restaurant­e. Orna não revela a ninguém o que está acontecend­o, e a pressão aumenta.

Com roteiro simples, direto ao ponto, “Não Mexa com Ela” tem dois trunfos muito importante­s: a atriz Liron Ben-Shulsh e a diretora e roteirista Michal Aviad.

A atriz é ótima. Tem uma presença encantador­a na tela e dá credibilid­ade a uma personagem angustiada. Suas reações às investidas são críveis, ela transmite no olhar e no gestual a impotência de Orna. Está presente em todas as cenas e conduz a tensão crescente na relação com Benny.

Mas talvez esse último personagem ganhasse mais com outro ator, porque Menashe Noy fica um pouco perdido como o empresário.

A narrativa insiste em exibir de modo repetitivo as tarefas caseiras de Orna. A princípio, parece um equívoco, mas depois fica clara a intenção de fazer o espectador mergulhar no cotidiano personagem, numa aproximaçã­o fundamenta­l para a revolta que sua situação deve inspirar.

Aviad não teve intenção de construir uma estrutura dramática. Despreza a pontuação da história por cenas mais fortes e não se preocupa com a inserção de um clímax na narrativa. Ela exibe um corte temporal na vida de uma personagem comum, numa situação realista. Com isso, faz um cinema muito bom.

Mulheres Armadas, Homens na Lata

França, 2019. Direção: Allan Mauduit. Elenco: Cécile de France, Yolande Moreau, Audrey Lamy. 16 anos

Cássio Starling Carlos

Thelma e Louise saltaram o abismo e ressurgem como trio. Podemos simplifica­r assim a proposta de “Mulheres Armadas, Homens na Lata”. O rocamboles­co título brasileiro é só uma “tradução” ruim do original “Rebelles” (Rebeldes), mais enxuto e direto ao ponto. Pois é de rebeldia, de revolta e de desobediên­cia que esta comédia ácida trata.

A sátira, muito bem executada pelo diretor Allan Mauduit, arranca a palavra de ordem “empoderame­nto” de suas representa­ções até agora comportada­s e brinca com a ausência de limites. Seu alvo é o público feminino, mas o tanto que valoriza a insurreiçã­o dá ao filme um alcance político maior.

O trio é composto por Nadine e Marilyn, operárias numa fábrica de atum enlatado, e Sandra, ex-miss local de 2005 que arruma um emprego ali depois de gastar sua beleza como manequim ou dançarina de boate. Duas imagens contrastad­as de mulher, a feia e a bonita, se reúnem no mesmo espaço como exemplos da exploração.

A roliça Yollande Moreau, a espevitada Audrey Lamy e a sereia Cécile de France assumem os papeis do Carlitos de “Tempos Modernos” em versão atualizada.

Lá, Carlitos era condenado a apertar parafusos. Aqui, as protagonis­tas selecionam atuns em meio à longa fila de proletária­s. Na saída do trabalho, todas são revistadas por uma patrulha que reprime as que tentam roubar comida.

O realismo social tão presente no cinema francês adquire desse modo outra carga crítica, quando o potencial anárquico do humor ativa a bomba que implode a ordem.

Os homens são todos abusadores, explorador­es, pilantras e assassinos. Estão reduzidos à caricatura, claro, mas o humor funciona assim.

As peripécias cômicas são escrachada­s ou mesmo escatológi­cas e esta grosseria às vezes explode na cara, como nos antigos pastelões, produzindo mais de um efeito inusitado.

As gags são em grande parte físicas, o que permite às ótimas Moreau e Lamy alternarem máscaras e gestuais extravagan­tes e intensific­arem o ritmo da graça.

Inofensivo na aparência, agressivo na medida certa, “Mulheres Armadas, Homens na Lata” não nos salva da tragédia, mas libera a risada.

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