Folha de S.Paulo

Girassóis maduros não precisam do Sol

Dizia Toni Morrison: ‘Quero sentir o que eu sinto, mesmo que não seja felicidade’

- Djamila Ribeiro Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenado­ra da coleção de livros Feminismos Plurais

Escrevo esta coluna ainda lidando com a notícia da morte de Toni Morrison, uma das maiores escritoras de todos os tempos.

A tristeza de sua passagem não é maior do que o amor e o legado que ela deixou para o mundo. Inclusive, penso que um modo de homenageá-la é seguir com coragem e construind­o mundos possíveis.

Morrison foi editora antes de lançar, aos 39 anos, seu romance de estreia, o premiado “O Olho Mais Azul”.

Contribuiu para a publicação de outras mulheres negras, entre elas, Angela Davis.

Com essa sensação, resolvi ler um livro de poemas de uma jovem poeta, Louise Queiroz, chamado “Girassóis Estendidos na Chuva”. Um livro de uma pequena editora, a Paralelo13­S.

Adorei a delicadeza da edição, o trabalho gráfico cuidadoso, típico de quem realmente ama livros. Há uma diferença entre ter uma editora e, de fato, amar livros.

Há algum tempo, a professora do departamen­to de letras da Universida­de Federal da Bahia Milena Britto me presenteou com ele. “Você vai gostar”, ela me disse em um almoço afetuoso. Eu, apesar de dialogar e publicar com autoras contemporâ­neas, tenho o péssimo hábito de me fechar naquelas escritoras que amo. Faço o mesmo com música, confesso.

Porém, movida pelo amor a Morrison, passei a ler todas as matérias e entrevista­s que saíram após sua morte. E me vi inspirada a ler as mais jovens do que eu. “Temos linguagem”, já nos ensinou Morrison. Resolvi ler aquele livro que me chamou atenção desde o início pelo nome e pelo cuidado com a edição.

Girassóis são famosos pelo heliotropi­smo, ou seja, o movimentos da planta em direção ao sol, girando o caule.

A luz solar serve para facilitar a fotossínte­se e acumular energia necessária para o cresciment­o das sementes. Porém, esse fenômeno acontece só na fase de cresciment­o da planta. Ao florescer, ela não se vira mais ao Sol. A planta madura não precisa mais buscar o Sol todos os dias, por assim dizer. Dá uma interessan­te metáfora.

Ao ler os poemas de Queiroz, vi em alguns o girassol florescend­o, em outros, a planta cheia de flores.

A poeta fala dos silêncios ditos e não ditos. Seu olhar sobre o amor e recusas, sua tentativa de quebrar o silenciame­nto é forte.

Todo florescer é uma dor também, assim como a busca pelo Sol mesmo em dias de chuva. Estender girassóis em dias de chuva requer coragem. São coisas de quem gosta de praia em dia nublados.

Geralmente, só quem ama o mar vai visitá-lo em dias nublados ou com chuva. Surfistas pegam onda, pássaros pousam na areia por mais tempo, algumas pessoas caminham sem pressa.

É possível observar detalhes escondidos. A conversa com o mar é mais longa e sem interrupçã­o, o som das ondas acalma, o silêncio é mais profundo. Não há distrações, há o desejo real de estar ali. Quem ama o mar, o faz de modo incondicio­nal porque não são necessário dias ensolarado­s para vislumbrar o infinito. Assim como o girassol sabe a hora de não precisar se virar ao Sol.

Os poemas de Queiroz são de entrega e leveza, dor e prazer —não se nega a vida.

“Girassóis Estendidos na Chuva” me faz lembrar de uma frase de Morrison: “Eu quero sentir o que eu sinto, mesmo que não seja felicidade”.

Em uma sociedade apavorada por sentir dores próprias da condição humana, o livro faz um chamado à vida.

“Assim, de longe/ Com o corpo cheio de sua ausência/ Minha língua tinge silêncios na falta”, diz um dos poemas de Queiroz. Assumir a falta é sentir o que se sente.

“Quando eu crescer, quero ser meio você” é um trecho de uma música da jovem cantora Dandara Manoela. Outro encontro com uma mais jovem que estava esperando florescer. Com sua voz doce e forte, me tirou de uma espécie de inércia afetiva, termo que inventei para definir meu comportame­nto com as cantoras que amo.

Mas está aí algo que eu sinto desde que li Morrison pela primeira vez: “Quando eu crescer, quero ser meio você”.

Meio, porque ela é insuperáve­l e nos ensinou a voar, mas foi Dandara Manoela quem me fez relembrar esse desejo antigo.

Pela voz de uma jovem cantora talentosa, que me deu seu disco em um encontro ao acaso em uma rua de Paraty, eu também me (re)descubro.

Talvez o girassol maduro não precise do Sol, mas aprenda a apreciá-lo, assim como os dias nublados e de chuva.

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Linoca Souza

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