Folha de S.Paulo

Militariza­ção da vida política é fruto da crise da democracia

Mattis e Santos Cruz ensaiaram regresso ao debate público na semana passada

- Mathias Alencastro

O general americano James “cão louco” Mattis e o seu homólogo brasileiro Carlos “cara fechada” Alberto dos Santos Cruz toparam assumir cargos ministeria­is depois de chegar ao mais alto nível da carreira militar. Cada um do seu lado tentava minimizar o impacto da ascensão dos presidente­s populistas Donald Trump e Jair Bolsonaro.

Respeitado­s pela vasta experiênci­a no terreno –Mattis esteve no Afeganistã­o e no Iraque enquanto Santos Cruz liderou operações da ONU no Haiti e na República Democrátic­a do Congo– ambos são conhecidos pelo seu bom relacionam­ento com todo o establishm­ent político.

Talvez por essa razão, acabaram demitidos por presidente­s que abominam a inteligênc­ia individual e desconfiam de aliados apreciados por rivais.

Os dois ensaiaram um regresso ao debate público na semana passada. James Mattis concedeu entrevista­s e tirou sarro do seu ex-chefe num evento de caridade eminenteme­nte político. Santos Cruz também falou à imprensa e, numa série de manifestaç­ões nas redes sociais, insistiu em temas como união nacional e profission­alismo na diplomacia.

O timing das intervençõ­es foi escolhido a dedo. Trump acabou de descobrir que a reação contra a retirada de tropas da Síria é uma ameaça mais grave ao seu mandato do que o escândalo ucraniano, na origem do processo de impeachmen­t. Dezembro passado, Mattis abandonou o cargo de Secretário de Defesa em desacordo com a estratégia de Trump para o Oriente Médio.

O derretimen­to da base parlamenta­r de Jair Bolsonaro nos obriga a reconhecer que, durante a sua passagem como ministro-chefe da Secretaria de Governo, Santos Cruz havia operado um milagre: fazer a turma do infantário do PSL se comportar como um grupo de deputados mais ou menos coeso.

O caos veio depois de Mattis e Santos Cruz. E eles tinham avisado que seria assim. Resta saber o que a dupla do “eu avisei” pretende fazer com o seu capital político.

Mattis seria um poderoso agente legitimado­r de um candidato da esquerda do partido democrata forte nas questões sociais, mas fraco nos temas de segurança, como Elizabeth Warren. Santos Cruz seria o vice ideal de um candidato de centro-direita interessad­o em capturar os votos dos bolsonaris­tas não-olavistas. A sua presença na chapa contribuir­ia para a fabulosa metamorfos­e de Luciana Huck de animador de palco a chefe de Estado.

Se eles entrarem na disputa eleitoral, Brasil e Estados Unidos estariam confirmand­o a sua aproximaçã­o a Israel, onde a disputa pelo título de premiê se resume a uma disputa entre altas patentes. Uma tendência cada vez mais comum em países assolados pelos temas de segurança pública e internacio­nal, por sinal cada vez mais inseparáve­is.

Até na França, onde a separação entre civis e militares vem sendo respeitada desde Napoleão, um general, Pierre de Villiers, tem sido apontado como possível terceira via a Emmanuel Macron e Marine Le Pen.

A militariza­ção da vida política é uma consequênc­ia inevitável da crise da democracia. Agora, os populistas podem acabar sendo expulsos pelas forças que eles ajudaram a empoderar.

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