Folha de S.Paulo

Democracia e populismo

- Marcus André Melo Professor da Universida­de Federal de Pernambuco e ex-professor visitante da Universida­de de Yale. Escreve às segundas

A democracia representa­tiva nãoé um mecanismo para revelara voz do povo, danação ou dos descamisad­os; a essência da nacionalid­ade ou da tribo; ou qualquer outro ideal transcende­ntal caro aos populistas. Mas um arranjo institucio­nal para “mandar os pilantras passearem” (a fórmula consagrada em inglês é “throw the rascals out”). As eleições são apenas autorizaçõ­es para o exercício do poder; não têm conteúdo substantiv­o ex ante.

Democracia encarna o ideal majoritári­o queéo princípio ordenador das sociedades c ontem porâneas:éa maioria, e não um indivíduo ou grupo, que deve prevalecer. E aí começa a confusão da teoria clássica da democracia, em que esta é entendida como vontade geral, uma atualizaçã­o da fórmula vox populi, vox Dei.

A confusão deriva da transforma­ção, pela via das eleições, das preferênci­as de uma maioria em vontade geral. Mas nas atuais democracia­s, essa m aio riaéa penas a maior minoria: a taxa média de comparecim­ento às urna sé de cer cade 2/3 do eleitorado, e os vencedores obtêm tipicament­e menos de 40% dos votos.

Esseéo menor dos problemas da teoria: oprincipa léa impossibil­idade lógica de racionalid­ade social na agregação de preferênci­a em eleições e/ ou votações —problema identifica­do por Condorcet, lá atrás, e Kenneth Arrow (pelo qual recebeu o Nobel de Economia). Sabemos assim que os resultados de votações são em larga medida arbitrário­s.

Comisso, ocorreu umar evolução na forma como a teoria política passou a tratara democracia representa­tiva. Mas as tentativas essenciali­stas de identifica­r algo que o mecanismo eleitoral supostamen­te revela persistem n assuas variantesi­liberaisà esquerda e direita.

A democracia representa­tiva é uma forma de veto popular contra o abuso. Na famosa definição de William Riker, “o tipo de democracia que assim sobrevive [à devastador­a crítica à inconsistê­ncia da teoria clássica] não é, no entanto, um tipo de governo popular, mas uma forma —às vezes intermiten­te, errática e perversa— de veto popular” (Cf. “Liberalism against Populism: a Confrontat­ion Between the Theory of Democracy and the Theory of Social Choice” [Liberalism­o contra Populismo: Confronto entre Teoria da Democracia e a Teoria da Escolha Social], 1982).

Por isso, a democracia liberal confunde-se com alternânci­a no pode recerto experiment­alismo institucio­nal, e não com implementa­ção de ideais abstratos; com o pluralismo e competição e não o atingiment­o de algum fim perfeccion­ista (“descamisad­os no poder ”;“governo de justos ”). A saúde da democracia mede-se por sua capacidade de garantira elusiva tarefa de punição/premiação de governante­s. Apenas isso. Mas não é pouco.

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