Folha de S.Paulo

Arranha-céu de vidro

- Ruy Castro

rio de janeiro Em 2013, as incursões de Edward Snowden por computador­es a que não fora convidado revelaram que a Agência Nacional de Segurança dos EUA podia vigiar a população americana através de um programa de interferên­cia nos celulares, adquirido das empresas de telecomuni­cação. Ou seja, a mulher do sujeito podia não saber que ele estava tendo um caso com a Beyoncé, mas o governo sabia.

O Brasil acaba também de instituir por decreto o Cadastro Base do Cidadão —uma “base integrador­a” de dados pessoais dos brasileiro­s. Segundo li, constará de dados cadastrais —nome, data do nascimento, sexo, filiação, RG, CPF, CNPJ, PIS, Pasep, título de eleitor etc. A estes serão acrescidas, em devido tempo, as “bases temáticas”, incluindo dados biométrico­s: palma das mãos, digitais, cor dos olhos, formato do rosto, voz, maneira de andar. Serão dados “interoperá­veis”, ou seja, circularão pelos ministério­s, agências e demais órgãos do governo.

Não sei se gosto da ideia de ver minhas particular­idades circulando alegrement­e entre pessoas que não conheço. Como todo brasileiro da minha geração e, se não bastasse, jornalista, já convivi o suficiente com censores, burocratas e aspones para saber que, até por questões higiênicas, convém manter distância deles.

Não se trata de temer que eles descubram o que eu penso, se é que penso. Para isso, basta ler esta coluna —que ocupo desde 2007, dia sim, dia não. É pelo tipo de controle moral, econômico e social que, com as novas tecnologia­s, o Estado pode ter sobre o cidadão e pelas chantagens que disso podem decorrer. E não importa quem exerça esse controle, se esquerda ou direita. Ambas nos vedam a saída.

Lembrei-me de um asfixiante poema de Cassiano Ricardo, em que Deus convoca Adão. E este diz: “Ouvi a Tua voz soar no jardim e temi, porque estava nu, e escondi-me. Escondi-me neste arranha-céu de vidro”.

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