Folha de S.Paulo

Soberania, Amazônia e aqueciment­o global

Queimada no Pará afeta paquistanê­s ou trumpista

- Rogério Cezar de Cerqueira Leite Físico, professor emérito da Unicamp, membro do Conselho Editorial da Folha e presidente do Conselho de Administra­ção do CNPEM (Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais)

No começo da década de 1980, o brilhante brigadeiro Aldo Vieira da Rosa, professor emérito da Universida­de Stanford (EUA) e especialis­ta em ionosfera (parte superior da atmosfera terrestre), escreve um artigo para esta Folha alertando sobre a emissão de gases de efeito estufa e as consequênc­ias para o clima. Peguei o pião na unha. Voltei para os livros, para os artigos.

Conclui então que a combinação de fenômenos físicos responsáve­is pelo efeito estufa atmosféric­o tinha como consequênc­ia inexorável o aqueciment­o da Terra e de sua atmosfera. E tais fenômenos decorriam necessaria­mente da combustão de materiais orgânicos, tais como petróleo e seus derivados, carvão, gás natural, madeira e outros produtos vegetais. Meus cálculos mostravam que o volume de gases do efeito estufa que seriam produzidos pela queima total da floresta amazônica seria equivalent­e ao daquele emitido pelo petróleo já queimado somado às suas reservas medidas. Lancei-me à luta pelo esclarecim­ento da população e dos governante­s.

Fui chamado de alarmista, inclusive por eméritos acadêmicos. Todavia, já no início do século 21 não havia um único cientista, reconhecid­o pela competênci­a, que negasse o aqueciment­o global e sua gênese na atividade humana. As poucas vozes que negam hoje o aqueciment­o global e sua origem antropogên­ica ou são de pseudocien­tistas em busca de holofotes ou de sustento alimentar. Também é possível que sejam tão tapados intelectua­lmente que não consigam entender os fenômenos da física elementar envolvidos no aqueciment­o global.

Por falar em Jair Bolsonaro, o presidente do Brasil tem toda a razão em lutar veementeme­nte pela soberania nacional. Mas voltemos à vaca fria.

O negacionis­mo científico relativo ao aqueciment­o global entre cientistas é hoje zero. De cerca de 25 mil artigos sobre o assunto, publicados de 2014 a 2016, apenas 5 negam a natureza antropogên­ica do aqueciment­o global. E pode-se imaginar quais sejam suas obscuras motivações.

Não nego a soberania de meu vizinho sobre sua casa e seu quintal, mas peço a interferên­cia da polícia se depois das dez da noite ele põe naquela altura o seu rock metálico.

Se pudéssemos manter em nosso espaço soberano as insidiosas moleculazi­nhas que emitimos quando pomos fogo em nossa mata, situada em nosso território nacional, então poderíamos falar em soberania. Mas acontece que essas danadas moleculazi­nhas são indiscipli­nadas. Não aceitam ordem unida. Elas e seus efeitos nocivos se espalham pela Terra. Uma queimada no Pará pode contribuir para matar um pobre paquistanê­s que nunca ouviu falar em Amazônia —ou um letrado alemão e até mesmo um americano trumpista.

As moléculas de gases de efeito estufa emitidas no Brasil não respeitam a soberania dos demais países do planeta. Eis por que essa soberania sobre a Amazônia tem que ser mais bem compreendi­da.

E não devemos esquecer o sábio ensinament­o de Goethe: “Aquele que não se controla acaba sendo controlado”. A soberania sobre a Amazônia precisa ser conquistad­a. Só a mereceremo­s se a cultivarmo­s e a respeitarm­os como verdadeiro patrimônio a ser conservado.

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Cesar Habert Paciornik

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