Folha de S.Paulo

Missionári­os abandonam conversão religiosa ao se aproximar de indígenas

Vaticano amplia foco e debate temas polêmicos para igreja em encontro com bispos da Amazônia

- Reinaldo José Lopes

são carlos Entre os participan­tes brasileiro­s do Sínodo da Amazônia, reunião convocada pelo papa Francisco que até este domingo (27) discute os rumos da fé e dos problemas sociais e ambientais na região, está uma delegação de 26 membros que defende uma forma de evangeliza­r os povos indígenas bastante distinta da que marcou a Igreja Católica desde a sua chegada ao Brasil.

“Trabalhamo­s com a evangeliza­ção no sentido do diálogo, do respeito às culturas diferentes e, sobretudo, do desafio de perceber os sinais da presença de Deus no meio de cada povo”, diz dom Roque Paloschi, arcebispo de Porto Velho e presidente do Cimi (Conselho Indigenist­a Missionári­o).

Criado em 1972, durante o regime militar, o Cimi conta hoje com 171 missionári­os, divididos em 11 regionais espalhadas pelo país. Na delegação enviada ao sínodo em Roma estão tanto o arcebispo quanto missionári­os leigos (não religiosos) e parceiros indígenas do órgão.

Influencia­do pela teologia da libertação, corrente de pensamento para a qual não é possível separar a fé cristã da luta contra a pobreza e a desigualda­de, o conselho oferece assistênci­a jurídica, teológica e de comunicaçã­o às comunidade­s indígenas que buscam seus direitos constituci­onais, sem que isso implique a conversão ao catolicism­o.

Com 14 anos de episcopado na Amazônia (antes de se tornar arcebispo de Porto Velho, também foi bispo de Roraima), dom Roque Paloschi explica as diferentes abordagens desse trabalho.

“Em Roraima, tive duas experiênci­as diferentes. Com o povo macuxi, que já tinha tido contato com monges beneditino­s no início do século 20, esse processo de diálogo a acolhida dos sacramento­s [como o batismo].”

“Já com o povo ianomâmi tivemos outro processo, de respeito e de promoção da vida daquelas comunidade­s. Não é uma evangeliza­ção explícita, mas uma presença respeitosa dos missionári­os junto a eles.”

A chamada “evangeliza­ção implícita”, de fato, é um dos eixos do trabalho do Cimi, diz o missionári­o leigo Aleandro Laurindo da Silva, 36.

Ele trabalha com comunidade­s indígenas urbanas, de etnias como os guaranis e os pancararus, na Grande São Paulo, e com grupos do Vale do Ribeira (também guaranis), no interior do estado.

“Nos nossos encontros, não falamos de Jesus, de Deus, da eucaristia. A perspectiv­a é: como vamos mostrar a essas comunidade­squeoscris­tãossão bons, que Deus é bom? Por meio da nossa presença solidária ao lado delas, para que conquistem seus direitos.”

De acordo com Silva, um dos modelos para essa abordagem foi a atuação de missionári­as francesas, ligadas à Fraternida­de das Irmãzinhas de Jesus, junto aos tapirapés, povo de Mato Grosso que quase desaparece­u nas primeiras décadas do século 20.

Com a ajuda das missionári­as, cujo trabalho de assistênci­a médica reduziu drasticame­nte a mortalidad­e infantil entre os tapirapés, a etnia hoje tem uma população de cerca de mil pessoas.

Elas tinham uma pequena capela na aldeia dos tapirapés, às vezes visitada pelos indígenas, mas passaram a valorizar os ritos tradiciona­is do grupo e têm certa participaç­ão neles.

“A evangeliza­ção não é entregar um pacote pronto, mas traincluiu çar caminhos junto com as populações”, diz o arcebispo. “Se um macuxi se torna cristão e católico, não pode negar sua tradição, seus costumes, sua história. Do contrário, a evangeliza­çãosetorna­colonizaçã­o.”

O documento inicial preparado para as discussões do sínodo, o chamado “instrument­um laboris” (“instrument­o de trabalho”, em latim), tem sido atacado por cardeais e outros prelados conservado­res.

As críticas se centram nas propostas para acolher influência­s teológicas e rituais dos povos indígenas na liturgia católica e também no debate sobre permitir padres casados e uma maior participaç­ão das mulheres na igreja. O arcebispo de Porto Velho diz que o melhor é evitar reações violentas aos críticos.

“Diante das polêmicas, das acusações, o melhor caminho é seguir a experiênci­a de Jesus. Diante de Pilatos e de Herodes, Jesus quase não fala. Evitou a bateção de boca e foi fiel à sua missão.”

Para Aleandro Silva, a virulência dos ataques já existia, em certa medida, nos grupos católicos ultraconse­rvadores brasileiro­s, por exemplo. “Eles já tinham essa visão deturpada do Evangelho antes.”

O missionári­o ressalta a importânci­a dos debates propostos pelo documento.

“A gente está falando de regiões remotas, para onde a maioria dos padres não quer ir. Às vezes o pessoal do Cimi leva dois meses viajando de barco para percorrer nove aldeias, gastando milhares de reais, quando seria possível oferecer assistênci­a religiosa a essas populações de outra maneira, formando pessoas nas próprias comunidade­s.”

“Teremos consequênc­ias positivas para a igreja no mundo todo: ela vai se arejar, abrir as janelas e deixar de se pautar apenas pela realidade europeia. E será muito importante denunciar a visão destrutiva e integracio­nista que existe sobre os povos indígenas.”

Se um macuxi se torna católico, não pode negar sua tradição. Do contrário, a evangeliza­ção se torna colonizaçã­o dom Roque Paloschi arcebispo de Porto Velho

 ?? Vincenzo Pinto/ AFP ?? Monge franciscan­o e líder indígena participam juntos de procissão no Vaticano
Vincenzo Pinto/ AFP Monge franciscan­o e líder indígena participam juntos de procissão no Vaticano

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