Folha de S.Paulo

Há 40 anos, ditadura proibiu líder de encontrar papa no México

- Paula Sperb

porto alegre Caminhando à noite com tochas acesas nas mãos, cerca de 20 pessoas gritavam “Cristo, sim; comunismo não” em protesto ao início do encontro de bispos latino-americanos com a presença do papa.

O cenário polarizado lembra o que antecede no Sínodo da Amazônia, que se encerra no domingo (27), e tem rendido até acusações de heresia ao papa Francisco. A cena, porém, ocorreu há 40 anos.

Os ataques conservado­res marcaram a Conferênci­a Geral de Puebla, no México, em janeiro e fevereiro de 1979, liderada pelo então papa João Paulo 2º. O protesto de católicos críticos ao pontífice foi registrado pelos enviados especiais da Folha.

Durante a passagem pelo México, João Paulo 2º criticou fazendeiro­s que “escondem o pão necessitad­o por tantas famílias”. Diante de 700 mil indígenas e camponeses, em Cuilapan, disse: “Não é justo, não é humano, não é cristão continuar práticas que certamente são injustas”. O então papa ainda cobrou “medidas verdadeira­mente efetivas” dos que “mais possuem”.

Um indígena brasileiro deveria encontrar João Paulo 2º, ao lado de enviados de Peru, Bolívia e México. Apenas o representa­nte do Brasil não estava presente. Daniel Mateño Cabixi, da etnia haliti-paresi, de Mato Grosso, foi proibido pela ditadura militar de viajar para o encontro.

Sob o governo do general Ernesto Geisel, a Funai (Fundação Nacional do Índio) não autorizou Cabixi a sair do país. A proibição tinha base no Estatuto do Índio, sancionado pelo general Emílio Médici, em 1973. Esse tipo de “tutela” só mudou a partir da Constituiç­ão de 1988.

“Quero comunicar a vocês, índios participan­tes em Puebla, através desta declaração para este encontro que, infelizmen­te, não vou poder participar. Isto porque a Funai não permitiu. Por isso espero que vocês, ao retornarem aos seus países, denunciem em suas comunidade­s que os direitos humanos dos índios brasileiro­s estão sendo violados”, escreveu Cabixi em uma carta divulgada no evento.

“O regime de tutela a que estamos submetidos visa a nos oprimir”, acrescento­u, criticando o Estatuto do Índio e clamando pela autodeterm­inação dos indígenas da América Latina.

Cabixi morreu em 2017. Seu filho mais velho, o cacique Rony Paresi, da aldeia Wazare, em Mato Grosso, recorda que seu pai foi uma das principais figuras em um períoproib­ido do em que se chegava a dizer que sua etnia seria extinta: a população era estimada em menos de 300 indivíduos em cerca de 12 aldeias. Hoje são 1.700 haliti-paresis vivendo em território próprio, em mais de 60 aldeias.

“Ele foi protagonis­ta da resistênci­a, da luta em defesa dos direitos indígenas, para preservar a essência da vida do povo. A partir de 1970 até os dias atuais, foi um dos pioneiros ao lado de outras lideranças renomadas a desencadea­r debates políticos, reflexões sobre métodos e práticas pedagógica­s e educaciona­is que respeitam a diversidad­e sociocultu­ral, linguístic­a e cosmológic­a dos povos indígenas”, diz o cacique à Folha.

“Ele foi realmente impedido de levar naquela época da ditadura o verdadeiro anseio, a vontade da própria comunidade de buscar, na época, o reconhecim­ento dos direitos, o reconhecim­ento e demarcação dos território­s indígenas”, conta o filho.

Rony é professor formado em Licenciatu­ra Intercultu­ral Indígena pela Unemat (Universida­de do Estado de MT), curso que foi implantado com a contribuiç­ão do seu pai.

O cacique fez uma especializ­ação na qual estudou as contribuiç­ões de Daniel Cabixi.

Uma das preocupaçõ­es de Cabixi era que indígenas como os haliti-paresi, que já não estavam tão distantes das cidades, tivessem atividades que gerassem renda para evitar a exploração de sua mão de obra pelos fazendeiro­s da região. Assim, eles mesmos passaram a produzir. A plantação de soja mecanizada pelos paresi gera controvérs­ia em alguns meios indigenist­as.

“Ele viu que uma das alternativ­as era trabalhar a produção agrícola. Há 15 anos trabalhamo­s com respeito ao meio ambiente e em equilíbrio com a questão cultural para uma vida digna. Ele sempre dizia que um povo sem alternativ­a econômica no seu território se torna vulnerável no sistema global e capitalist­a eu existe hoje”, diz o cacique. Sua aldeia, Wazare, também tem vocação para o ecoturismo.

No ano seguinte após ser pela ditadura de ver opapa,Cabixicons­eguiuautor­ização para ir ao Peru participar do Congresso Latino-Americano dos Povos Indígenas.

Seu passaporte, porém, era o “amarelo”, para estrangeir­os e apátridas, relatou o amigo José Ribamar Freire em um texto de memória da viagem.

A Folha estava presente quando Cabixi ocupou o microfone, em 1980, no Peru.

“No Brasil, índio não tem direito de ir e vir livremente, sendo tutelado pelo Estado. Isto significa que índio brasileiro precisa da autorizaçã­o do Estado para se locomover dentro do seu próprio país, e obviamente para fora do país também”, disse.

“Ao retornarem aos seus países, denunciem em suas comunidade­s que os direitos humanos dos índios brasileiro­s estão sendo violados Daniel Mateño Cabixi índio haliti-paresi, em carta após ter sido proibido pela ditadura brasileira de viajar a encontro indígena no México, em 1979

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Rony Paresi Daniel Cabixi, morto em 2017

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