Folha de S.Paulo

A Lava Jato não é só a operação, mas um estado de espírito PODER

Professor de Harvard que recuou de críticas a Sergio Moro e a procurador­es defende que operação seja catalisado­r de reformas

- Ana Luiza Albuquerqu­e

rio de janeiro Professor de direito na Universida­de Harvard e editor-chefe de um blog sobre corrupção, Matthew Stephenson, 45, ficou surpreso com a audiência que obteve ao escrever sobre as mensagens vazadas entre o ex-juiz Sergio Moro e os procurador­es da Lava Jato.

Stephenson publicou dois artigos sobre o tema. No primeiro, foi rápido e duro ao condenar os envolvidos. No segundo, voltou atrás e disse que o conteúdo das mensagens não era tão grave. Este último, “O incrível escândalo que encolheu?”, foi citado por Moro ao se defender em uma audiência no Senado.

Em visita ao Brasil para participar de um evento na FGV (Fundação Getulio Vargas), no Rio, o professor disse à Folha que as mensagens podem fortalecer Jair Bolsonaro (PSL) e que acredita que o presidente não respeitará a autonomia de instituiçõ­es anticorrup­ção.

O professor também afirmou que a Lava Jato está chegando ao fim e que só terá impacto a longo prazo se o atual momento for aproveitad­o para aprovar reformas no sistema criminal e no financiame­nto político.

O que fez o sr. recuar na crítica às mensagens trocadas entre o então juiz Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol?

Quando vi a reportagem inicial [em junho], tive uma reação negativa muito forte em relação às interações privadas entre juiz e procurador.

Pelo que estou familiariz­ado nos Estados Unidos, me pareceu claramente impróprio. Então refleti um pouco mais, li o conteúdo e aprendi com colegas brasileiro­s sobre como os procedimen­tos funcionam no Brasil. Recuei porque concluí que meu julgamento inicial foi precipitad­o e que os problemas levantados eram mais complicado­s.

Vamos supor que esse tipo de comunicaçã­o entre juízes e procurador­es seja comum no Brasil. Isso torna a situação ética?

Se é consistent­e com os códigos de ética, não tenho certeza. Num sentido geral, acho que é problemáti­co ter esse grau próximo de comunicaçã­o entre os procurador­es e os advogados e os juízes. Também acho que pode haver um problema estrutural com os procedimen­tos criminais no Brasil.

Você tem um juiz que precisa trabalhar muito perto da acusação, no contexto de acompanhar a investigaç­ão, mas que também vai precisar mudar de papel e se tornar um árbitro neutro. Acho que algumas dificuldad­es que surgiram têm menos a ver com o juiz Moro, como indivíduo, e mais com essa estrutura.

As evidências sugerem motivos para se preocupar e talvez a necessidad­e de reformar as práticas, que separariam os papéis com mais clareza.

Mas é possível levantar questões sérias sobre essa investigaç­ão sem concordar com a narrativa de que foi uma perseguiçã­o política.

O sr. acredita que as mensagens poderão ser usadas por políticos acusados de corrupção para descredibi­lizar as instituiçõ­es?

Já está acontecend­o. Há investigaç­ões em curso contra pessoas próximas a Jair Bolsonaro, incluindo seu filho. Não me surpreende­ria que apoiadores de Bolsonaro tentassem descredibi­lizar o Ministério Público.

Isso é preocupant­e porque, para combater a corrupção, é preciso construir instituiçõ­es que tenham credibilid­ade, legitimida­de e autonomia.

Para defender Lula, existe essa campanha de descredibi­lização da acusação, do Judiciário. Não só acho que essa narrativa não é verdade, mas me preocupo que propagá-la terá consequênc­ias destrutiva­s a longo prazo.

Há um ano o sr. escreveu um artigo sobre a possibilid­ade de Bolsonaro se eleger e atacar as instituiçõ­es que combatem a corrupção. Recentemen­te ele quebrou uma tradição e escolheu para a Procurador­ia-Geral da República um nome que não estava na lista tríplice. Também tentou intervir na Polícia Federal. Esses são sinais do que previa?

Sim. Bolsonaro é familiar, vemos líderes como ele em vários países. Ele vem dizendo “sou um cara firme, vou limpar a corrupção, não sou como aqueles outros políticos”. Então, porque era tudo pessoal, tudo sobre ele, ele tem tendências anti-institucio­nais. Não demoraria muito até minar essas instituiçõ­es. Você precisa construir instituiçõ­es que têm autonomia. Esse tipo de coisa que eu achei que um político como o Bolsonaro não toleraria.

Tanto da esquerda quanto da direita parece haver ataques às instituiçõ­es. O PT, fora do poder, faz isso mais retoricame­nte. Bolsonaro está fazendo isso institucio­nalmente. Usando sua autoridade para fazer coisas que não são tecnicamen­te ilegais, mas que desafiam normas estabeleci­das há tempos, para dar a ele ou a aliados mais controle sobre as instituiçõ­es de Justiça.

O sr. ouvir falar sobre o filho de Bolsonaro que está sendo investigad­o [o senador Flávio Bolsonaro]? Ele também atacou o Ministério Público.

Sim. E algumas mensagens indicam que procurador­es estavam preocupado­s se a administra­ção e o juiz Moro permitiria­m que as investigaç­ões prosseguis­sem. Isso põe a Procurador­ia sob um ângulo melhor. Você vê a Procurador­ia não como apoiadores da direita que fabricaram a vitória de Bolsonaro, mas dizendo “nós queremos ir atrás desse cara”.

A coisa mais previsível é que qualquer político ameaçado em uma investigaç­ão contra corrupção inevitavel­mente dirá “isso é uma caça às bruxas com motivações políticas”. Você diz que é um ataque político para descredibi­lizar a acusação.

O sr. escreveu um texto levantando preocupaçõ­es quando Moro aceitou ser ministro da Justiça. Recentemen­te ele foi criticado por membros da Polícia Federal por não ter enfrentado o presidente, ao menos publicamen­te, quando Bolsonaro ameaçou mudar o comando da instituiçã­o. Quais suas impressões sobre Moro no cargo?

Aceitar a posição alimentou a narrativa anti-Lava Jato. Se Moro tivesse publicamen­te indicado que não aceitaria, porque era importante manter a reputação da independên­cia do Judiciário, isso mandaria uma mensagem muito poderosa.

Suspeito que ele acreditava que, se juntando ao governo, poderia avançar nas reformas anticorrup­ção. É muito cedo para dizer se ele estava certo sobre isso, embora eu tenha ouvido que o pacote anticrime tem coisas que entidades contra a corrupção acham boas, mas que é limitado em outros pontos, e não está claro se vai seguir em frente.

Estamos numa situação que, graças aos vazamentos, Moro está numa posição mais fraca em relação a Bolsonaro. Inicialmen­te parecia que Bolsonaro precisava de Moro. Agora, minha percepção é de que Moro precisa de Bolsonaro. É inteiramen­te possível que Moro tenha aceitado o cargo com boa-fé, mas acho que foi um erro infeliz.

É por isso que o sr. diz que as mensagens vazadas acabaram sendo boas para o presidente?

Sim, por alguns motivos. Se você pensou que haveria coisas que Bolsonaro gostaria de fazer que Moro diria “não faça isso” ou “se você fizer isso, vou me demitir”, isso não é mais factível. A posição de Moro é mais fraca e, se Bolsonaro decidir que quer se livrar dele, é relativame­nte fácil.

O segundo motivo é que, agora que Bolsonaro e seu partido estão no poder, são eles que podem ser investigad­os. A descredibi­lização dos procurador­es e das instituiçõ­es de Justiça pode ajudá-los.

O terceiro motivo é que acredito que Bolsonaro se beneficia quanto mais a oposição está focada em Lula. A Lava Jato ainda é muito popular. Quando a esquerda enfatiza a injustiça feita com Lula e como a Lava Jato é horrível, para muita gente parece que a esquerda é hostil à luta anticorrup­ção.

Para combater a corrupção, é preciso construir instituiçõ­es que tenham credibilid­ade, legitimida­de e autonomia. [Propagar] campanhas de descredibi­lização do Judiciário terá consequênc­ias destrutiva­s a longo prazo

O sr. defende que a Lava Jato só terá um impacto a longo prazo se funcionar como um catalisado­r para uma agenda de reformas. Qual o legado da operação até aqui?

Nos últimos cinco anos, a Lava Jato foi tão central na discussão pública que pode parecer que a corrupção sempre vai estar na linha de frente do debate. Isso não é verdade. Nossa preocupaçã­o é que, embora a Lava Jato tenha resultado em condenaçõe­s, pode não haver um impacto a longo prazo, se esse último período não se encaminhar do jeito certo.

A Lava Jato não é só a operação, mas um estado de espírito. Se as pessoas aceitarem a corrupção como o jeito que as coisas são, essa atitude pode ajudar a perpetuá-la. Ela se alimenta da desesperan­ça, do cinismo. O melhor cenário é a Lava Jato também levar a uma transforma­ção na atitude em relação à corrupção.

Uma dimensão tem a ver com a transmissã­o do conhecimen­to adquirido na operação. Eles aprenderam muito, pelas coisas que fizeram bem e pelos erros. Essa informação deve continuar a ser disseminad­a pelo Brasil.

A segunda dimensão tem a ver com a transforma­ção da legislação, as novas medidas contra a corrupção, o pacote anticrime. Seria útil avançar nesses itens enquanto essa questão ainda está no centro da consciênci­a dos brasileiro­s. Acho que tanto a acusação quanto a defesa têm pontos válidos sobre os procedimen­tos criminais.

Por outro lado, acho que os vazamentos levantaram preocupaçõ­es legítimas sobre como o sistema pode criar colaboraçõ­es excessivam­ente próximas entre os procurador­es e os juízes.

Outra área em que seria útil usar o momento da Lava Jato para atingir reformas é a do financiame­nto político. O caixa dois levanta muita preocupaçã­o.

Por último, a preocupaçã­o é a de que, se a narrativa se tornar uma de heróis contra vilões, muito personaliz­ada e polarizada, isso pode ser um legado improdutiv­o. O importante é uma combinação entre o espírito da Lava Jato e uma atitude mais construtiv­a, em relação ao que o Brasil aprendeu e o que precisa ser feito para avançar.

 ?? Ricardo Borges/Folhapress ?? Matthew Stephenson, 45 Professor de direito na Universida­de Harvard (EUA), é editor-chefe do The Global Anticorrup­tion Blog e doutor em ciência política (Harvard)
Ricardo Borges/Folhapress Matthew Stephenson, 45 Professor de direito na Universida­de Harvard (EUA), é editor-chefe do The Global Anticorrup­tion Blog e doutor em ciência política (Harvard)

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