Folha de S.Paulo

Português Jorge Jesus ensina que atacar é preciso

Antes de brilhar nos grandes de Portugal e agora do Brasil, técnico viu autoconfia­nça no trabalho ser motivo de piada

- Paulo Vinicius Coelho

lisboa Campeão da Libertador­es neste sábado (23) com o Flamengo, Jorge Jesus leva rotina pacata fora do gramado. Nem sempre foi assim.

No início de sua carreira, o técnico de 65 anos tinha de se desdobrar para manter a mente sã. Quase todas as noites, pegava o carro, deixava Felgueiras, no norte de Portugal, e fazia viagem de três horas e meia até Lisboa para ver a mãe, Maria Elisa. Com um câncer no intestino, ela sofria com as dores e agonizava com a ausência recorrente de morfina para amenizá-las.

Devoto à família, Jesus se virava para conseguir ampolas com um médico local e, então, levá-las para a enfermeira que cuidava de sua mãe. No outro dia, logo às 5h, fazia o percurso de volta para chegar a tempo de dar o treino. No meio do caminho, invariavel­mente, desabava e chorava.

Elisa morreu em 1994, mas nunca deixou o seu lado. A cada vez que entra em campo para comandar uma atividade, Jesus carrega uma foto da mãe em sua pasta de trabalho. É a sua musa.

Um ano depois de perdêla, o Mister, como é chamado pelos jogadores, garantiu o acesso para a elite portuguesa com o Felgueiras e, simulando o Barcelona de Johan Cruyff, transformo­u a equipe em sensação do início do campeonato. Não aguentaria o ritmo e encerraria a temporada rebaixado. No meio de uma crise, viu um homem invadir o treino e encostar uma arma em sua cabeça.

“Vai embora, mouro (como são chamadas as pessoas do sul de Portugal na região norte)”, ouviu do torcedor. Nem ali esmoreceu. Ficou e bateu de frente com ele. Não seria, portanto, diante de manifestaç­ões controvers­as que escutou desde que desembarco­u para assumir o Flamengo que Jesus se abalaria.

Chamado de “Russo” em sua infância, ele tem a casca grossa, fruto das dificuldad­es que driblou ainda cedo no subúrbio da Amadora. Naquela época, já se sobressaía pela personalid­ade forte que o perseguiu como jogador e que resplandec­e ainda hoje.

O seu sucesso no rubro-negro carioca é produto de uma confiança inegociáve­l em suas credenciai­s, confundida regularmen­te com arrogância. Chegado a um autoelogio, Jesus ousou dizer uma vez que inventou uma ciência própria ao longo de 20 anos em que comandou clubes de menor expressão. Viu, então, o país inteiro rir de suas palavras.

Ex-soldador, quase sempre brigando com a conjugação dos verbos enquanto masca o seu chiclete de pêssego, ele fez a afirmação durante uma palestra na Faculdade de Motricidad­e Humana, hoje apadrinhad­a pelo famoso técnico José Mourinho.

“Assistir a um treino de Jorge Jesus é como assistir a uma aula universitá­ria”, afirmou o filósofo Manuel Sérgio, 86 anos, ao anunciá-lo no evento.

Com passagem pela Unicamp, o renomado professor é vizinho da família de Jesus na região da Costa da Caparica, na margem sul de Lisboa. Ao mesmo tempo em que é considerad­o o guru do técnico, ele representa um exemplo da quebra de paradigmas em seu trabalho.

“Qual outro treinador teve um professor de filosofia como o seu auxiliar? Jesus é, acima de tudo, um homem de grande curiosidad­e, muito meu amigo e que absorve aspectos do jogo a partir de outras áreas. No futebol, ele é o mestre e eu, o discípulo”, conta Sérgio, que esteve ao seu lado no Benfica e o obrigava a ler livros de 600 páginas.

Um estudioso da bola, Jesus abandonou a carreira de atleta aos 35 anos, saltando para o cargo de treinador em 1990.

“Ele era muito exigente em todos os sentidos. Ninguém se levantava no banco de reservas e passava à sua frente na área técnica. Não admitia também interferên­cia de quem quer que fosse no vestiário”, lembra o ex-zagueiro Jorge Baidek, primeiro brasileiro a ser comandado por Jesus.

“O que ele tem para dizer ao atleta, não espera, manda no calor do momento, mesmo”, acrescenta o ex-jogador.

Obcecado pela perfeição, o técnico passou quase 20 anos sem tirar férias. Um português que se recusa a desbravar os mares, prefere relaxar ao lado de amigos em sua mesa no restaurant­e Solar dos Presuntos, em Lisboa, apreciando uma cabeça de garoupa à troika, seu prato favorito, e jogando cartas. É um costume que mantém desde que passou pelo Belenenses, seu ponto de virada no banco de reservas para maiores desafios.

No tradiciona­l clube de Lisboa, conseguiu um quinto lugar na Liga Portuguesa, chegou à final da Taça de Portugal e peitou os gigantes Bayern de Munique e Real Madrid.

Antes de enfrentar Lúcio, Zé Roberto e companhia, viu um homem pendurado em um poste e o acusou de ser espião dos alemães. Não passava de um eletricist­a, no entanto.

Reverencia­do em seu país, Jesus tem os seus passos discutidos diariament­e na imprensa portuguesa.

Muitas vezes, é mais fácil assistir a jogos do Flamengo, disponívei­s em mais de uma emissora local, do que a de qualquer um dos três grandes do país, Benfica, Porto e Sporting. Personagem carismátic­o, não é exagero dizer que o Mister gera mais interesse nacional, inclusive, que Mourinho, concorrend­o apenas com Cristiano Ronaldo.

Por muito tempo, enquanto acompanhav­a o futebol brasileiro, incluindo a Série B, em sua casa nas madrugadas lisboetas, o técnico carregou o sonho de trabalhar do outro lado do oceano. Agora, vê a ciência que prega ter inventado e aperfeiçoa­do ao longo do tempo conquistar a América do Sul. Ninguém ri dela mais.

“Quando tomei essa decisão [assumir o Flamengo], eu fui contra o meu agente, meus amigos... [Diziam] ‘vai para um campeonato em que os treinadore­s não tem uma semana’. Mas eu tinha muita convicção do meu trabalho

Jorge Jesus em entrevista à Fox após o jogo

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Henry Romero/Reuters 1 Jogadores do Flamengo com o troféu de campeão da Libertador­es 2 Jorge Jesus abraça o meia Diego 3 Os laterais Filipe Luís e Rafinha celebram 4 No Rio de Janeiro, torcedores comemoram a conquista
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Ricardo Moraes/Reuters

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