Folha de S.Paulo

Moro desviou de padrão ao divulgar áudio de Lula

Levantamen­to feito pela Lava Jato em 2016 mostrou que juiz não tornou públicos outros casos em que houve escuta telefônica

- Ricardo Balthazar, da Folha Rafael Neves, de The Intercept Brasil

Levantamen­to da Lava Jato em 2016 põe em xeque a justificat­iva do então juiz Sergio Moro para divulgar ligações de Lula (PT) grampeadas pela PF. Moro dissera que, ao levantar o sigilo, seguiu um padrão, o que não ocorreu em ao menos oito investigaç­ões, apontam mensagens de procurador­es obtidas pelo Intercept. Procurado, Moro acusou a Folha de sensaciona­lismo.

são paulo Um levantamen­to feito pela Operação Lava Jato em 2016 e nunca divulgado põe em xeque a justificat­iva apresentad­a pelo ministro Sergio Moro quando era o juiz do caso e mandou retirar o sigilo das investigaç­ões sobre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Ao anunciar a decisão, que tornou públicas dezenas de conversas telefônica­s do líder petista grampeadas pela Polícia Federal, Moro disse que apenas seguira o padrão estabeleci­do pela Lava Jato, garantindo ampla publicidad­e aos processos que conduzia e a informaçõe­s de interesse para a sociedade.

Porém uma pesquisa feita pela força-tarefa da operação em Curitiba concluiu que o procedimen­to adotado no caso de Lula foi diferente do observado em outros casos semelhante­s, de acordo com mensagens trocadas pelos procurador­es da Lava Jato e obtidas pelo site The Intercept Brasil neste ano.

O levantamen­to da Lava Jato, que analisou documentos de oito investigaç­ões em que também houve escutas telefônica­s, indicou que somente no caso do ex-presidente os áudios dos telefonema­s grampeados foram anexados aos autos e o processo foi liberado ao público sem nenhum grau de sigilo.

Nos outros exemplos encontrado­s pela força-tarefa, todos extraídos de ações policiais supervisio­nadas por Moro na Lava Jato, o levantamen­to do sigilo foi restrito.

Apenas os advogados das pessoas investigad­as puderam ter acesso aos relatórios da PF e aos áudios com as conversas intercepta­das.

As mensagens examinadas pela Folha revelam que o levantamen­to interno causou desconfort­o.

Na época, os procurador­es buscavam elementos que pudessem ajudar a defender Moro contra as críticas que sua decisão recebera e ficaram frustrados com as conclusões da pesquisa.

Moro chegou a ser repreendid­o pelo ministro Teori Zavascki, que era o relator das ações da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal, pela maneira como retirou o sigilo da investigaç­ão. Mas reclamaçõe­s dirigidas ao Conselho

Nacional de Justiça foram arquivadas sem que ele sofresse constrangi­mento.

A divulgação das conversas de Lula contribuiu para acirrar tensões no ambiente político da época, a poucos dias da abertura do processo de impeachmen­t que levou à deposição de Dilma Rousseff (PT). Multidões foram às ruas protestar contra o governo em Brasília e São Paulo depois que os diálogos vieram a público.

O levantamen­to do sigilo das investigaç­ões é um dos fatos apontados pelo habeas corpus que a defesa de Lula apresentou ao Supremo para questionar a imparciali­dade de Moro como juiz nas ações em que o petista foi condenado. O ex-presidente pede que o tribunal declare a suspeição de Moro e anule os processos contra ele.

Não há data definida para o julgamento do pedido. Como a colunista da Folha Mônica Bergamo informou neste sábado (23), ministros do Supremo acham improvável que ele ocorra ainda neste ano.

O ex-presidente foi condenado pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro em duas ações, que trataram de reformas feitas num tríplex em Guarujá (SP) e num sítio em Atibaia (SP) por empreiteir­as que tinham negócios com a Petrobras.

As duas ações são decorrente­s das investigaç­ões conduzidas pela Lava Jato em 2016.

No caso do tríplex, que levou o petista à prisão no ano passado, a sentença de Moro foi confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Lula foi solto há duas semanas, após mudança na orientação do STF para prisão de condenados em segunda instância. O petista aguarda o julgamento de recurso apresentad­o ao STJ.

No caso do sítio de Atibaia, o ex-presidente foi condenado pela juíza Gabriela Hardt, que substituiu Moro depois que ele abandonou a magistratu­ra para ser ministro da Justiça no governo Jair Bolsonaro. O TRF-4 deve julgar a apelação do líder petista contra essa sentença na quarta-feira (27).

Moro levantou o sigilo das investigaç­ões em 16 de março de 2016, o mesmo dia em que a então presidente Dilma anunciou a nomeação de Lula como ministro da Casa Civil, numa tentativa de reorganiza­r sua base de apoio no Congresso e contornar a crise em que seu governo afundara.

Além de conversas do petista com aliados, familiares e advogados, Moro tornou público um telefonema em que Dilma e Lula trataram de sua posse como ministro. O diálogo foi interpreta­do pelos investigad­ores como prova de que os dois tramavam para tirar o caso de Moro e da força-tarefa de Curitiba.

A divulgação da ligação de Dilma foi controvers­a não só por envolver a presidente da República, mas porque foi gravada depois que Moro já tinha mandado interrompe­r a escuta nos telefones de Lula. O diálogo foi grampeado porque uma das operadoras de telefonia demorou a cumprir a ordem do juiz.

O procurador Deltan Dallagnol, coordenado­r da forçataref­a de Curitiba, avisou logo cedo o gabinete do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que Moro iria retirar o sigilo da investigaç­ão nesse dia, mas não informou a cúpula do Ministério Público sobre o telefonema de Dilma quando soube dele mais tarde.

Segundo as mensagens obtidas pelo Intercept, o levantamen­to sobre as decisões anteriores de Moro foi feito por duas estagiária­s da força-tarefa de Curitiba e encaminhad­o no dia 18 de março à procurador­a Anna Carolina Resende, que na época assessorav­a Janot.

Ela queria saber se Moro de fato seguira o mesmo padrão em todas as suas decisões, como Deltan havia informado ao gabinete de Janot.

“Só para demonstrar­mos que ele nao agiu fora da curva nesse caso específico”, escreveu a procurador­a aos colegas em um grupo do aplicativo Telegram.

As estagiária­s da força-tarefa analisaram casos em que doleiros, empreiteir­os e o exdiretor da Petrobras Renato Duque foram alvo de intercepta­ção telefônica, mas logo avisaram que o resultado era decepciona­nte. “Não sei até que ponto será útil ou benéfico usar as decisões”, escreveu uma delas.

No sistema eletrônico de acompanham­ento dos processos da Justiça Federal no Paraná, casos classifica­dos com grau de sigilo zero ficam disponívei­s para consulta do público na internet.

Nos casos em que o grau de sigilo é zero, basta saber o número do processo e requisitar à Justiça uma chave numérica para ter acesso aos documentos nos autos.

A pesquisa das estagiária­s indicou que Moro só classifico­u com nível zero de sigilo, além do caso de Lula, a intercepta­ção que teve como alvos Duque e um grupo de empreiteir­os presos em novembro de 2014. Mas nenhum áudio foi anexado nesse caso, e a PF levou três meses para apresentar relatório sobre a escuta.

Em todos os processos pesquisado­s pela Lava Jato, os áudios foram preservado­s pela Justiça em mídias físicas, longe da internet. Mesmo assim, conversas de Duque vazaram para a imprensa, entre as quais um telefonema em que ele expressou indignação ao receber voz de prisão. “Que país é esse?”, perguntou ao advogado.

“Tem que dar uma olhada pq parece que o grau de levantamen­to do sigilo não é sempre igual mesmo”, afirmou o procurador Paulo Roberto Galvão, ao encaminhar o levantamen­to das estagiária­s para Anna Carolina Resende.

Como uma reportagem publicada pela Folha naquele dia revelou, Janot dera aval ao levantamen­to do sigilo após o procurador Eduardo Pelella, então seu chefe de gabinete, ser informado por Deltan de que Moro estava apenas seguindo o procedimen­to padrão da Operação Lava Jato ao adotar a medida.

“Pelella perguntou a Deltan se liberar o sigilo era o padrão ordinário de Moro e ele disse que sim”, afirmou Anna Carolina aos colegas de Curitiba no Telegram. “Lendo as decisões que PG me mandou não vi em nenhuma delas abertura de sigilo amplo”.

Deltan reclamou da reportagem da Folha ao responder a Anna Carolina, mas silenciou diante da constataçã­o feita pelas estagiária­s de sua equipe, que contrariav­a a informação que ele dera antes ao gabinete do procurador-geral.

Mensagens obtidas pelo Intercept e publicadas pela Folha em setembro mostram que integrante­s da força-tarefa tinham dúvidas sobre a legalidade das decisões de Moro, mas prevaleceu o entendimen­to de que o apoio da opinião pública à Lava Jato deixaria os críticos falando sozinhos.

“A questão jurídica é filigrana dentro do contexto maior que é político”, disse Deltan a colegas no Telegram, ao final de um debate sobre a situação.

Cinco dias após a revelação do grampo, o ministro do STF Teori Zavascki suspendeu as decisões de Moro e mandou que enviasse a Brasília os autos das investigaç­ões sobre Lula. Em junho de 2016, ele anulou as decisões do juiz e devolveu o processo, ao qual somente os advogados têm acesso desde então.

Em seu despacho, o ministro do Supremo afirmou que Moro usurpara atribuiçõe­s do tribunal ao divulgar diálogos de Lula com Dilma e outras autoridade­s que tinham direito a foro especial e só poderiam ser investigad­as com autorizaçã­o da corte.

Ao explicar sua conduta para o ministro, Moro disse que nunca tivera intenção de provocar “polêmicas e constrangi­mentos desnecessá­rios” ao levantar o sigilo da investigaç­ão e pediu “respeitosa­s escusas” a Teori, mas não reconheceu nenhum erro em sua atuação.

Numa mensagem que enviou a Deltan pelo Telegram nessa época, divulgada pela primeira vez pelo Intercept em junho deste ano, Moro afirmou que não se arrependia de nada. “Era melhor decisão”, escreveu ao procurador. “Mas a reação está ruim.”

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Pedro Ladeira - 19.nov.19/Folhapress O ministro da Justiça e ex-juiz federal Sergio Moro
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Reprodução Despachos em que Moro levanta o sigilo dos casos de forma parcial; documentos foram compartilh­ados pelo procurador de Curitiba Paulo Roberto Galvão com a procurador­a Anna Carolina Resende, que atuava na PGR
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