Moro desviou de padrão ao divulgar áudio de Lula
Levantamento feito pela Lava Jato em 2016 mostrou que juiz não tornou públicos outros casos em que houve escuta telefônica
Levantamento da Lava Jato em 2016 põe em xeque a justificativa do então juiz Sergio Moro para divulgar ligações de Lula (PT) grampeadas pela PF. Moro dissera que, ao levantar o sigilo, seguiu um padrão, o que não ocorreu em ao menos oito investigações, apontam mensagens de procuradores obtidas pelo Intercept. Procurado, Moro acusou a Folha de sensacionalismo.
são paulo Um levantamento feito pela Operação Lava Jato em 2016 e nunca divulgado põe em xeque a justificativa apresentada pelo ministro Sergio Moro quando era o juiz do caso e mandou retirar o sigilo das investigações sobre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Ao anunciar a decisão, que tornou públicas dezenas de conversas telefônicas do líder petista grampeadas pela Polícia Federal, Moro disse que apenas seguira o padrão estabelecido pela Lava Jato, garantindo ampla publicidade aos processos que conduzia e a informações de interesse para a sociedade.
Porém uma pesquisa feita pela força-tarefa da operação em Curitiba concluiu que o procedimento adotado no caso de Lula foi diferente do observado em outros casos semelhantes, de acordo com mensagens trocadas pelos procuradores da Lava Jato e obtidas pelo site The Intercept Brasil neste ano.
O levantamento da Lava Jato, que analisou documentos de oito investigações em que também houve escutas telefônicas, indicou que somente no caso do ex-presidente os áudios dos telefonemas grampeados foram anexados aos autos e o processo foi liberado ao público sem nenhum grau de sigilo.
Nos outros exemplos encontrados pela força-tarefa, todos extraídos de ações policiais supervisionadas por Moro na Lava Jato, o levantamento do sigilo foi restrito.
Apenas os advogados das pessoas investigadas puderam ter acesso aos relatórios da PF e aos áudios com as conversas interceptadas.
As mensagens examinadas pela Folha revelam que o levantamento interno causou desconforto.
Na época, os procuradores buscavam elementos que pudessem ajudar a defender Moro contra as críticas que sua decisão recebera e ficaram frustrados com as conclusões da pesquisa.
Moro chegou a ser repreendido pelo ministro Teori Zavascki, que era o relator das ações da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal, pela maneira como retirou o sigilo da investigação. Mas reclamações dirigidas ao Conselho
Nacional de Justiça foram arquivadas sem que ele sofresse constrangimento.
A divulgação das conversas de Lula contribuiu para acirrar tensões no ambiente político da época, a poucos dias da abertura do processo de impeachment que levou à deposição de Dilma Rousseff (PT). Multidões foram às ruas protestar contra o governo em Brasília e São Paulo depois que os diálogos vieram a público.
O levantamento do sigilo das investigações é um dos fatos apontados pelo habeas corpus que a defesa de Lula apresentou ao Supremo para questionar a imparcialidade de Moro como juiz nas ações em que o petista foi condenado. O ex-presidente pede que o tribunal declare a suspeição de Moro e anule os processos contra ele.
Não há data definida para o julgamento do pedido. Como a colunista da Folha Mônica Bergamo informou neste sábado (23), ministros do Supremo acham improvável que ele ocorra ainda neste ano.
O ex-presidente foi condenado pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro em duas ações, que trataram de reformas feitas num tríplex em Guarujá (SP) e num sítio em Atibaia (SP) por empreiteiras que tinham negócios com a Petrobras.
As duas ações são decorrentes das investigações conduzidas pela Lava Jato em 2016.
No caso do tríplex, que levou o petista à prisão no ano passado, a sentença de Moro foi confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Lula foi solto há duas semanas, após mudança na orientação do STF para prisão de condenados em segunda instância. O petista aguarda o julgamento de recurso apresentado ao STJ.
No caso do sítio de Atibaia, o ex-presidente foi condenado pela juíza Gabriela Hardt, que substituiu Moro depois que ele abandonou a magistratura para ser ministro da Justiça no governo Jair Bolsonaro. O TRF-4 deve julgar a apelação do líder petista contra essa sentença na quarta-feira (27).
Moro levantou o sigilo das investigações em 16 de março de 2016, o mesmo dia em que a então presidente Dilma anunciou a nomeação de Lula como ministro da Casa Civil, numa tentativa de reorganizar sua base de apoio no Congresso e contornar a crise em que seu governo afundara.
Além de conversas do petista com aliados, familiares e advogados, Moro tornou público um telefonema em que Dilma e Lula trataram de sua posse como ministro. O diálogo foi interpretado pelos investigadores como prova de que os dois tramavam para tirar o caso de Moro e da força-tarefa de Curitiba.
A divulgação da ligação de Dilma foi controversa não só por envolver a presidente da República, mas porque foi gravada depois que Moro já tinha mandado interromper a escuta nos telefones de Lula. O diálogo foi grampeado porque uma das operadoras de telefonia demorou a cumprir a ordem do juiz.
O procurador Deltan Dallagnol, coordenador da forçatarefa de Curitiba, avisou logo cedo o gabinete do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que Moro iria retirar o sigilo da investigação nesse dia, mas não informou a cúpula do Ministério Público sobre o telefonema de Dilma quando soube dele mais tarde.
Segundo as mensagens obtidas pelo Intercept, o levantamento sobre as decisões anteriores de Moro foi feito por duas estagiárias da força-tarefa de Curitiba e encaminhado no dia 18 de março à procuradora Anna Carolina Resende, que na época assessorava Janot.
Ela queria saber se Moro de fato seguira o mesmo padrão em todas as suas decisões, como Deltan havia informado ao gabinete de Janot.
“Só para demonstrarmos que ele nao agiu fora da curva nesse caso específico”, escreveu a procuradora aos colegas em um grupo do aplicativo Telegram.
As estagiárias da força-tarefa analisaram casos em que doleiros, empreiteiros e o exdiretor da Petrobras Renato Duque foram alvo de interceptação telefônica, mas logo avisaram que o resultado era decepcionante. “Não sei até que ponto será útil ou benéfico usar as decisões”, escreveu uma delas.
No sistema eletrônico de acompanhamento dos processos da Justiça Federal no Paraná, casos classificados com grau de sigilo zero ficam disponíveis para consulta do público na internet.
Nos casos em que o grau de sigilo é zero, basta saber o número do processo e requisitar à Justiça uma chave numérica para ter acesso aos documentos nos autos.
A pesquisa das estagiárias indicou que Moro só classificou com nível zero de sigilo, além do caso de Lula, a interceptação que teve como alvos Duque e um grupo de empreiteiros presos em novembro de 2014. Mas nenhum áudio foi anexado nesse caso, e a PF levou três meses para apresentar relatório sobre a escuta.
Em todos os processos pesquisados pela Lava Jato, os áudios foram preservados pela Justiça em mídias físicas, longe da internet. Mesmo assim, conversas de Duque vazaram para a imprensa, entre as quais um telefonema em que ele expressou indignação ao receber voz de prisão. “Que país é esse?”, perguntou ao advogado.
“Tem que dar uma olhada pq parece que o grau de levantamento do sigilo não é sempre igual mesmo”, afirmou o procurador Paulo Roberto Galvão, ao encaminhar o levantamento das estagiárias para Anna Carolina Resende.
Como uma reportagem publicada pela Folha naquele dia revelou, Janot dera aval ao levantamento do sigilo após o procurador Eduardo Pelella, então seu chefe de gabinete, ser informado por Deltan de que Moro estava apenas seguindo o procedimento padrão da Operação Lava Jato ao adotar a medida.
“Pelella perguntou a Deltan se liberar o sigilo era o padrão ordinário de Moro e ele disse que sim”, afirmou Anna Carolina aos colegas de Curitiba no Telegram. “Lendo as decisões que PG me mandou não vi em nenhuma delas abertura de sigilo amplo”.
Deltan reclamou da reportagem da Folha ao responder a Anna Carolina, mas silenciou diante da constatação feita pelas estagiárias de sua equipe, que contrariava a informação que ele dera antes ao gabinete do procurador-geral.
Mensagens obtidas pelo Intercept e publicadas pela Folha em setembro mostram que integrantes da força-tarefa tinham dúvidas sobre a legalidade das decisões de Moro, mas prevaleceu o entendimento de que o apoio da opinião pública à Lava Jato deixaria os críticos falando sozinhos.
“A questão jurídica é filigrana dentro do contexto maior que é político”, disse Deltan a colegas no Telegram, ao final de um debate sobre a situação.
Cinco dias após a revelação do grampo, o ministro do STF Teori Zavascki suspendeu as decisões de Moro e mandou que enviasse a Brasília os autos das investigações sobre Lula. Em junho de 2016, ele anulou as decisões do juiz e devolveu o processo, ao qual somente os advogados têm acesso desde então.
Em seu despacho, o ministro do Supremo afirmou que Moro usurpara atribuições do tribunal ao divulgar diálogos de Lula com Dilma e outras autoridades que tinham direito a foro especial e só poderiam ser investigadas com autorização da corte.
Ao explicar sua conduta para o ministro, Moro disse que nunca tivera intenção de provocar “polêmicas e constrangimentos desnecessários” ao levantar o sigilo da investigação e pediu “respeitosas escusas” a Teori, mas não reconheceu nenhum erro em sua atuação.
Numa mensagem que enviou a Deltan pelo Telegram nessa época, divulgada pela primeira vez pelo Intercept em junho deste ano, Moro afirmou que não se arrependia de nada. “Era melhor decisão”, escreveu ao procurador. “Mas a reação está ruim.”