Folha de S.Paulo

Gasto com saúde em capitais ameaça verba de educação

Avaliação é de que ensino público deve perder recursos se for aprovada PEC do governo Bolsonaro

- Angela Pinho

“Educação gera menos voto porque tem efeito mais de médio e longo prazo. Já saúde tem uma percepção mais rápida. É basicament­e uma escolha entre viver e estudar Fernando Abrucio cientista político e chefe do departamen­to de gestão pública da Fundação Getúlio Vargas

são paulo Os gastos municipais em saúde superam por margem consideráv­el o mínimo obrigatóri­o por lei nas capitais do país. Já em educação, as despesas ficam muito próximas do piso determinad­o pela Constituiç­ão.

Para especialis­tas, o quadro sugere que o ensino público deve perder recursos para o SUS caso seja aprovado no Congresso o pacote de medidas econômicas proposto pelo ministro Paulo Guedes (Economia).

Atualmente, a legislação determina que municípios gastem 15% da receita em saúde e 25% em educação. No caso dos estados, 12% e 25%, respectiva­mente.

A Proposta de Emenda à Constituiç­ão (PEC) da gestão Bolsonaro prevê que estados e prefeitura­s possam deduzir da fatia da educação o valor que exceder o mínimo em saúde. Assim, a única obrigação será que a destinação das duas áreas, em conjunto, some ao menos 40% no caso dos municípios e 37% no dos estados.

O governo argumenta que, dessa forma, o gestor terá maior flexibilid­ade para administra­r o Orçamento de acordo com o perfil etário da população. A redação da PEC, porém, só permite que as despesas em saúde avancem sobre as da educação, não o contrário.

Para verificar como os municípios têm investido nos dois setores, a Folha mapeou as despesas das prefeitura­s das capitais do país em 2018 compiladas pelos sistemas de informação dos ministério­s da Educação e da Saúde.

O resultado mostra que o gasto delas em saúde é, em média, de 21,6%, superando em mais de um terço o mínimo constituci­onal de 15%. Já em educação, o investimen­to médio é de 25,8%, perto do mínimo de 25%.

A carga do financiame­nto do SUS sobre os municípios tem aumentado nos últimos anos devido à queda na participaç­ão federal no setor e à pressão de fatores como o envelhecim­ento populacion­al e a judicializ­ação de medicament­os e tratamento­s médicos.

Em 2002, a União bancava 52% dos gastos do SUS, e os municípios, 26%. Em 2017, essa proporção passou a ser de 43% e 31%. Segundo o dado mais recente, também de 2017, a média de dispêndio em saúde de todos os municípios do país é de 24% da receita. Os números foram compilados nos sistemas orçamentár­ios pelo Conasems (conselho dos secretário­s municipais do setor).

No caso da educação, não há um cálculo disponível para a média de todos os municípios.

Se a PEC de Guedes for aprovada, entidades e especialis­tas em políticas públicas avaliam que a área deve perder recursos em grande parte por uma questão de apelo político: uma doença gera uma demanda urgente para a população; já uma formação educaciona­l precária é um problema que não se sente de forma imediata.

“Educação gera menos voto porque tem efeito mais de médio e longo prazo. Já saúde tem uma percepção mais rápida. É basicament­e uma escolha entre viver e estudar”, afirma o cientista político Fernando Abrucio, chefe do departamen­to de gestão pública da FGV (Fundação Getúlio Vargas).

Em sua avaliação, se a PEC for aprovada, os cortes deverão recair principalm­ente sobre despesas de custeio e investimen­to, usadas em ações como construção e reforma de escolas e distribuiç­ão de merenda e material escolar.

A consequênc­ia, diz, vai ser um aumento da desigualda­de, uma vez que o Brasil é um dos países em que a formação tem maior peso na renda futura.

Procurador­a do Ministério Público de Contas do estado de São Paulo, Élida Graziane Pinto concorda e avalia que a

“O fato de as capitais já gastarem um percentual muito próximo do mínimo[em educação] mostra que elas estão gastando para cumprir o piso André Marques economista e coordenado­r do Centro de Gestão e Políticas Públicas do Insper

medida não necessaria­mente irá melhorar os serviços de saúde, já que prefeitos muitas vezes preferem gastar a verba em inauguraçõ­es de unidades de saúde, que geram foto, do que investir em estratégia­s notadament­e eficazes como a de saúde da família.

Recentemen­te, estudo do Banco Mundial mostrou que mais da metade dos hospitais de do país têm menos de 50 leitos, quando o parâmetro de eficiência é de 250.

Mais grave ainda, afirma ela, será se o Congresso permitir a inclusão de servidores inativos no cômputo de gastos, como o relator da PEC, senador Marcio Bittar (MDB-AC), já anunciou que pretende fazer.

O expediente é usado por governos como os de São Paulo, sob gestão João Doria (PSDB), e prefeitura­s como as de Porto Alegre, gerida por Nelson Marchezan Jr (PSDB). Esse é o principal fator pelo qual o Siope, sistema orçamentár­io do MEC, considera que a capital gaúcha não gasta o mínimo obrigatóri­o na área.

Favorável à proposta de Guedes, o economista André Marques, coordenado­r do Centro de Gestão e Políticas Públicas do Insper, também avalia que a medida, se aprovada, deve reduzir o investimen­to em educação.

“O fato de as capitais já gastarem um percentual muito próximo do mínimo mostra que elas estão gastando para cumprir o piso” diz.

Em sua opinião, porém, a perda de recursos não deve ter grande impacto porque o país tem cada vez menos crianças em idade escolar e porque há espaço para melhorar a eficiência de gestão na área.

Os gastos do Brasil em educação em relação ao PIB (Produto Interno Bruto) são similares aos dos países desenvolvi­dos, em alguns casos até superiores. O valor por estudante, porém, não chega à metade. Na saúde, a disparidad­e é maior. O país despende no setor 3,9% do PIB, enquanto países com sistema universal como Canadá e Reino Unido superam os 7%.

A possibilid­ade de a transição demográfic­a amenizar o impacto da redução de recursos para ações educaciona­is é contestada por Abrucio. “A mudança demográfic­a acontece ao longo de vários anos, ao passo que uma mudança na Constituiç­ão tem impacto já no ano seguinte”, diz.

Ele avalia também que o menor número de alunos poderia abrir espaço para o país recuperar o gasto em valores que estão defasados, como os dos salários dos professore­s.

Os vencimento­s dos educadores brasileiro­s não chegam a metade dos pagos nos países da OCDE (Organizaçã­o para a Cooperação e o Desenvolvi­mento Econômico), segundo levantamen­to feito pela organizaçã­o, que converte os valores para o mesmo poder de compra.

A PEC traz ainda incertezas sobre o Fundeb, fundo de financiame­nto do ensino básico que responde por 40% dos valores gastos na área e vence em 2020. Ele é composto por recursos federais, estaduais e municipais.

Essa é uma das preocupaçõ­es da Undime, entidade dos secretário­s municipais de educação que ainda estuda a proposta, assim como o Conasems, dos titulares da saúde.

Diretor de estratégia política do movimento Todos pela Educação, João Marcelo Borges afirma que o Congresso deveria ao menos elaborar uma regra de transição, com prazo de carência, para que a mudança, se aprovada, não gere impacto imediato no planejamen­to das secretaria­s de educação. Ele lembrou também que o país ainda precisa aumentar a cobertura das matrículas no ensino médio e na creche.

Borges lamenta o que chama de uma oportunida­de perdida. “O pacto federativo despreza a educação e, quando lembra dela, a põe em risco.”

“O pacto federativo despreza a educação e, quando lembra dela, a põe em risco João Marcelo Borges diretor de estratégia política do Todos pela Educação

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Rivaldo Gomes - 3.set.19/Folhapress Unidade de saúde na zona oeste de São Paulo; gastos municipais do setor superam o mínimo obrigatóri­o
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