Folha de S.Paulo

Afetados por vazamento de óleo relatam estafa mental

Afetados citam insônia e crises de choro após crise do óleo; pescador pensou em afundar seu barco

- João Pedro Pitombo e João Valadares

salvador e recife “Gente, tudo isso está fodendo minha saúde mental. Peço licença, mas vou me retirar do grupo. Essa merda já tomou proporções irreparáve­is a meu ver, vou fazer o que estiver ao meu alcance enquanto humana insignific­ante diante de tamanha tragédia”.

O desabafo foi feito por Yasilis Sampaio, 32. Moradora da praia de Serra Grande, em Uruçuca, sul da Bahia, naquela dia ela tinha acordado às 3h da manhã e corrido para o celular. Passou o dia acompanhan­do notícias sobre a chegada do óleo na sua região.

Sem desgrudar os olhos da tela, seguiu para a praia e participou de um mutirão para recolher o material. No fim do dia, esgotada, tomou a decisão de sair dos três grupos de voluntário­s de que participav­a no WhatsApp.

“Entrei em uma espécie de looping com tanta informação. Só pensava no desespero das pessoas, principalm­ente dos pescadores”, afirma.

Relatos como esse são constantes. Cerca de 80 dias depois da chegada das manchas de óleo no litoral brasileiro, voluntário­s, moradores das praias e trabalhado­res do mar relatam estresse e esgotament­o emocional.

E não há sinais de mudança no horizonte, já que o óleo continua chegando ao litoral dos estados nordestino­s e do Espírito Santo.

Entre os voluntário­s que têm atuado em mutirões, a sensação é a de “enxugar gelo”. Na semana passada, o óleo reapareceu na Bahia e no Piauí.

Trabalhand­o desde os 14 anos na praia de Gaibú, no Cabo de Santo Agostinho, Grande Recife, o pescador Edinaldo Rodrigues de Freitas, 48, não parou desde a chegada das primeiras manchas de óleo a Pernambuco.

Com seu barco, fez monitorame­ntos diários no mar, mergulhou para verificar manchas consolidad­as no fundo e removeu o petróleo da areia.

Nal, como é conhecido na praia, diz que não se reconhece mais. “Vivo em um inferno hoje, um inferno grande. Brigo com todo mundo. Não tenho paciência para nada. Grito com as pessoas porque minha vida se transformo­u”, diz.

No auge do desespero, chegou a pensar em afundar o seu barco em alto-mar numa tentativa desesperad­a de se li

vrar de um pesadelo. “Estou falando com você e já começo a me tremer aqui e a segurar o choro. A minha situação é de desespero. Estou à flor da pele.”

Laurineide Maria Santana, 56, trabalha há 35 anos no Conselho Pastoral de Pescadores, braço da Igreja Católica que atende pessoas que vivem da pesca artesanal em Pernambuco. Acostumada a falar em público, não consegue mais fazê-lo sem que o choro a interrompa.

“Não estávamos preparados para passar por isso. Eu me sinto assim. Sofremos um choque. Estou sem falar em público. Choro sem parar”, relata.

Há um mês, ela não dorme direito. “Nunca tive insônia e tenho passado noites em claro. Eu fico pensando nas pessoas, na sobrevivên­cia dos pescadores. Isso tem me causado uma perturbaçã­o psicológic­a muito grande”.

O cenário não é diferente para quem está longe mas tem uma relação afetiva com as praias atingidas. O empresário baiano Maurício Magalhães, 59, mora em São Paulo, mas tem uma casa em Arembepe, na Grande Salvador.

Ele tem evitado acompanhar o noticiário sobre o vazamento de óleo. Diz se sentir impotente diante do que considera o maior desastre ambiental que já viu na vida.

“É um ruptura muito cruel porque minha relação com a praia é uma coisa que considero visceral. O mar é meu ponto de refúgio, é onde encontro a minha paz interior”, afirma.

Há cerca de um mês, ele visitou a praia de Arembepe dias após o óleo ter chegado à região. Caminhou por cerca de uma hora na faixa de areia e voltou para casa com os pés totalmente manchados de preto. “Foi uma dor devastador­a”.

Além do estresse, também é recorrente o sentimento de revolta frente aos informes de prefeitura­s, hotéis e empresas de turismo que alegam normalidad­e nas praias.

Dona de uma hospedaria na praia de Itapuã, em Salvador, Caroline Almeida Rodrigues, 41, afirma viver um dilema diário quando clientes ligam em busca de reservas.

Ela diz que lhe falta coragem para fechar negócio, que prefere ser franca com seus possíveis clientes e os orienta a, por enquanto, não viajarem.

“Se eu fosse falar com o bolso, ia dizer ‘venham’. Mas meu senso me impede de não dizer a verdade. Até hoje vemos óleo nas águas, nas pedras, nas algas. Como vou dizer que está tudo bem?”, diz.

Além do prejuízo financeiro, o vazamento de óleo fez com que ela perdesse seu laço com o mar como fonte de lazer. Ela mora a poucos passos da praia, mas não mergulha na água salgada desde setembro. “Sinceramen­te, não me sinto preparada pra isso”.

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Fotos Leo Malafaia - 21.out.2019/AFP 1
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Cenas registram o trabalho de voluntário­s e funcionári­os do governo na limpeza das praias afetadas por vazamento de óleo, que chegou ao litoral brasileiro em 30 de agosto e cuja causa ainda não foi esclarecid­a: 1 voluntário fica preso em resíduos de petróleo na praia de Itapuama (PE) 2 funcionári­o municipal trabalha na limpeza da praia do Paiva (PE) 3 luvas sujas de óleo são deixadas na areia da praia de Camaçari (BA) 4 voluntário­s e funcionári­os se unem na praia de Itapuama (PE)
4 Cenas registram o trabalho de voluntário­s e funcionári­os do governo na limpeza das praias afetadas por vazamento de óleo, que chegou ao litoral brasileiro em 30 de agosto e cuja causa ainda não foi esclarecid­a: 1 voluntário fica preso em resíduos de petróleo na praia de Itapuama (PE) 2 funcionári­o municipal trabalha na limpeza da praia do Paiva (PE) 3 luvas sujas de óleo são deixadas na areia da praia de Camaçari (BA) 4 voluntário­s e funcionári­os se unem na praia de Itapuama (PE)
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Mateus Morbeck - 3.nov.2019/AFP 3
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