Folha de S.Paulo

República

- Marcos Lisboa Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005). Escreve aos domingos

Em tempos em que o STF é fonte de instabilid­ade jurídica e os Poderes perderam o pudor de fazer intervençõ­es arbitrária­s, talvez seja recomendáv­el, enquanto dura a desordem, deixar na geladeira a comemoraçã­o do dia da Proclamaçã­o da República.

Para entender o tamanho do nosso atraso institucio­nal, vale resgatar uma história.

Em 1783, diplomatas negociavam, em Paris, o fim da guerra pela independên­cia dos Estados Unidos. Havia reparações de lado a lado, mas os americanos não aceitavam concluir o acordo sem obter a região para além do rio Ohio.

Os ingleses aquiescera­m e a ex-colônia tornou-se proprietár­ia de terras que duplicavam a sua extensão territoria­l.

Pouco depois, representa­ntes da Confederaç­ão dos Estados Americanos elaboravam a Constituiç­ão do novo país na Filadélfia, enquanto seu Congresso, em Nova York, enfrentava os conflitos decorrente­s da independên­cia.

A Confederaç­ão não tinha poder para cobrar tributos e pagar os títulos de dívida com que remunerara seus soldados durante a guerra. As terras obtidas no acordo de Paris vieram em boa hora.

A engenhosid­ade americana construiu uma solução surpreende­nte, que congregava revolucion­ários e oportunist­as, incluindo integrante­s do Congresso responsáve­is pela sua aprovação.

Muitos colonos da Nova Inglaterra desejavam ocupar a região, que encantava pelos relatos sobre a generosida­de das suas terras. Parte da área recebida seria vendida para uma empresa que comerciali­zaria lotes para os colonos e aceitaria como pagamento títulos de dívida emitidos pela Confederaç­ão.

Durante semanas, representa­ntes da empresa negociaram com o Congresso as regras no novo território. “O que valeriam as casas dos homens da Nova Inglaterra na ausência de um bom governo?”, diziase então, segundo conta David McCullough em seu livro “The Pioneers”.

Em 1787, o Congresso aprovou a Ordenança do Noroeste, atendendo a muitas condições considerad­as essenciais pelos colonos para a construção de uma sociedade justa.

As regras previam liberdade religiosa, direito ao habeas corpus e ao julgamento com júri, proibição da intervençã­o em contratos livremente pactuados, a menos em caso de fraude, e apoio à educação, “que deve ser para sempre incentivad­a”.

Ficava também proibida a escravidão no novo território.

Alguns dos celebrados direitos individuai­s das emendas à Constituiç­ão americana copiam artigos da Ordenança.

Foi preciso, porém, uma guerra civil no século seguinte para que a escravidão fosse abolida no restante do país.

O desenvolvi­mento dos EUA é filho de longa, por vezes conflitada, construção das instituiçõ­es, e não de canetadas.

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