República
Em tempos em que o STF é fonte de instabilidade jurídica e os Poderes perderam o pudor de fazer intervenções arbitrárias, talvez seja recomendável, enquanto dura a desordem, deixar na geladeira a comemoração do dia da Proclamação da República.
Para entender o tamanho do nosso atraso institucional, vale resgatar uma história.
Em 1783, diplomatas negociavam, em Paris, o fim da guerra pela independência dos Estados Unidos. Havia reparações de lado a lado, mas os americanos não aceitavam concluir o acordo sem obter a região para além do rio Ohio.
Os ingleses aquiesceram e a ex-colônia tornou-se proprietária de terras que duplicavam a sua extensão territorial.
Pouco depois, representantes da Confederação dos Estados Americanos elaboravam a Constituição do novo país na Filadélfia, enquanto seu Congresso, em Nova York, enfrentava os conflitos decorrentes da independência.
A Confederação não tinha poder para cobrar tributos e pagar os títulos de dívida com que remunerara seus soldados durante a guerra. As terras obtidas no acordo de Paris vieram em boa hora.
A engenhosidade americana construiu uma solução surpreendente, que congregava revolucionários e oportunistas, incluindo integrantes do Congresso responsáveis pela sua aprovação.
Muitos colonos da Nova Inglaterra desejavam ocupar a região, que encantava pelos relatos sobre a generosidade das suas terras. Parte da área recebida seria vendida para uma empresa que comercializaria lotes para os colonos e aceitaria como pagamento títulos de dívida emitidos pela Confederação.
Durante semanas, representantes da empresa negociaram com o Congresso as regras no novo território. “O que valeriam as casas dos homens da Nova Inglaterra na ausência de um bom governo?”, diziase então, segundo conta David McCullough em seu livro “The Pioneers”.
Em 1787, o Congresso aprovou a Ordenança do Noroeste, atendendo a muitas condições consideradas essenciais pelos colonos para a construção de uma sociedade justa.
As regras previam liberdade religiosa, direito ao habeas corpus e ao julgamento com júri, proibição da intervenção em contratos livremente pactuados, a menos em caso de fraude, e apoio à educação, “que deve ser para sempre incentivada”.
Ficava também proibida a escravidão no novo território.
Alguns dos celebrados direitos individuais das emendas à Constituição americana copiam artigos da Ordenança.
Foi preciso, porém, uma guerra civil no século seguinte para que a escravidão fosse abolida no restante do país.
O desenvolvimento dos EUA é filho de longa, por vezes conflitada, construção das instituições, e não de canetadas.