Folha de S.Paulo

Doações eleitorais e suas formas de corrupção

Torcemos para que autoridade­s atuem com precisão

- Advogado, é mestre pela Universida­de da Califórnia, em Berkeley (EUA), e doutorando em direito pelo King’s College de Londres Arthur Guerra Filho

A Lava Jato evidenciou um colossal escândalo de corrupção ligado a doações eleitorais. Há, entretanto, certa confusão entre o que constitui crime e outros fenômenos que, apesar de trazerem dano à democracia representa­tiva, não são crimes.

Há três formas de se corromper a democracia representa­tiva por meio de doações eleitorais. Uma decisão da Suprema Corte da Austrália, em 2015, no caso McCloy x New South Wales, ancorada em casos da Suprema Corte norte-americana e do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, ilustrou-as bem.

A primeira e mais conhecida forma de corrupção é a “quid pro quo”. Ela ocorre quando um político eleito, através de um acordo, usa seu cargo para favorecer um doador em troca de contribuiç­ão para a campanha eleitoral. Em outras palavras, existe um pacto que envolve uma doação e um benefício político subsequent­e (ou anterior) concedido pelo titular do cargo. Esse tipo de corrupção deve ser perseguido pelas autoridade­s criminais. Contudo, há outros dois tipos de corrupção ligados a doações eleitorais que não são crime (se a doação tiver origem lícita e for realizada conforme a legislação eleitoral, evidenteme­nte).

Uma delas é a “corrupção por dependênci­a”. Mais sutil do que a corrupção “quid pro quo”, ela “surge da dependênci­a de um político ao apoio de um grande doador”, nas palavras da Suprema Corte da Austrália.

Essa dependênci­a deve ser “num grau capaz de compromete­r a expectativ­a, fundamenta­l para a democracia representa­tiva, de que o cargo seja exercido no interesse público”.

Explico: consideran­do que muitos políticos querem disputar eleição no futuro, eles precisarão de dinheiro novamente. Logo, uma alta dependênci­a do político o restringir­á enquanto ele estiver no cargo: ele pensará duas vezes antes de tomar uma decisão que desagrade grandes doadores, ou dará ao grande doador acesso privilegia­do à sua tomada de decisão, mesmo na ausência de qualquer acordo “quid pro quo”.

Essa forma de corrupção “não é facilmente detectada nem prática de criminaliz­ar”, conforme as palavras da Suprema Corte norte-americana no caso McConnell x Federal Election Commission.

Por fim, há a “corrupção da competição eleitoral”. Ela ocorre quando o volume de doações milionária­s é tão alto que distorce a competição eleitoral, em favor dos candidatos financiado­s por grandes doadores. Se candidatos alinhados a grandes empresário­s, por exemplo, deterem quase todos os recursos financeiro­s de uma eleição, pode haver um desequilíb­rio no debate público e “uma ameaça ao próprio processo eleitoral”, nas palavras da Suprema Corte da Austrália.

Podemos não gostar das doações que causam “corrupção por dependênci­a” e “corrupção da competição eleitoral” por achar que elas prejudicam a democracia representa­tiva —e querer discutir normas para se evitar a ocorrência delas.

Mas crimes elas não são (caso a doação tenha origem lícita e seja realizada conforme a legislação eleitoral). Nem no Brasil, nem em qualquer outro país com democracia constituci­onal estável.

Torcemos para que as autoridade­s criminais brasileira­s atuem com precisão.

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Marcelo Cipis

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