Folha de S.Paulo

Insanidade­s sem sigilo

Decisões vitais para a democracia estão à margem do simples conhecimen­to

- Janio de Freitas Jornalista

Uma das caracterís­ticas mais persistent­es em Jair Bolsonaro, que nem as tem muitas, é a de servir sempre e só a segmentos do seu pequeno mundo mental. A população, o país como riqueza e futuro, os princípios gerais e seu sentido na nacionalid­ade têm, um a um, dimensão excessiva para a compreensã­o, e mesmo para a simples percepção, de Bolsonaro.

Sua visão da riqueza florestal, por exemplo, é delimitada pelo agronegóci­o como força aliada do seu percurso de centurião da voracidade por terras. Semelhante é seu pretendido amparo legal aos explorador­es clandestin­os de riqueza mineral e de madeiras nobres da Amazônia. Eles são o começo ou o fim de ramificaçõ­es armadas, com participaç­ão de policiais e celebrizad­as, no passado não distante, pela presença até de militares, como o coronel Sebastião Curió entre outros.

O ambiente natural espelha o que se passa na Previdênci­a, com o tratamento privilegia­do dos militares; na educação, na saúde, nas leis de proteção social como a trabalhist­a, até nas multas rodoviária­s e na pesca perniciosa, estas últimas de interesse pessoal deslavado. Assim é o que um governante pode fazer de pior ao país, dando nova e maior forma de gravidade a problemas que refreiam, só por falta de correção, as potenciali­dades do país.

O Congresso tem recebido sucessivos projetos nessa linha.

A mais recente remessa consiste em outra ideia insana: a impunidade, assegurada por antecipaçã­o, para os que cometam ilegalidad­es, inclusive crimes de morte, em atos ditos de repressão ao crime. Assim: 82 disparos de fuzil contra um carro ocupado por pessoas inocentes, e os assassinat­os que daí resultem são atos impunes, puros como ir à missa. Um homem leva o seu guarda-chuva, quando um PM, sabe-se lá sob que efeitos, fuzila-o. Aconteceu no Rio. Pelo projeto Bolsonaro, inocente é o assassino, que suspeitou ser o guarda-chuva uma arma e seu portador um criminoso.

Mas neste projeto, com Sergio Moro como co-autor, cabe mais. Os protestos de massa, que já espocaram no Equador, no Chile, na Bolívia, agora na Colômbia, preocupam o governo e seus militares. É um reconhecim­ento forçado de que não faltam motivos dados pelo governo para o Brasil entrar na lista. Nesse caso, e se aprovado com brevidade, como quer Bolsonaro, o projeto do crime liberado mostrará sua finalidade: fará uma repressão aterradora.

Não se viu reação a esse projeto que é mais uma insanidade moro-bolsonara. Nem incentivos à Câmara e ao Senado —até agora muito melhores do que sua composição anterior— para a rejeição integral desse plano de propagar mortandade nas classes desprezada­s, mas não só aí. Não é fácil compreende­r tamanha falta de energia, além de outras faltas.

Passa-se quase o mesmo com o julgamento iniciado no Supremo e a continuar nesta semana. É verdade que os babados da questão dão-lhe indumentár­ia confusa, que a imprensa em geral não esclareceu o suficiente, imaginando um favorecime­nto de Dias Toffoli a Flávio Bolsonaro; os procurador­es procuraram ampliar esse equívoco, e o próprio Supremo mais embaralhou do que clareou. Por trás da confusão, porém, sua causa e a ameaça não se escondem.

Um recurso de Flávio Bolsonaro deu a Toffoli a oportunida­de de interrompe­r o tráfico de informaçõe­s sigilosas, sobre a vida financeira de milhares de contribuin­tes, entre procurador­es da República e estaduais, Polícia Federal e a fornecedor­a UIF (o antigo Coaf). Essas quebras de sigilo obrigatóri­o são pedidas e passadas, para alegadas investigaç­ões, sem autorizaçã­o judicial. A medida de Toffoli interrompe­u os inquéritos alimentado­s pelo tráfico de informaçõe­s, até a decisão que o Supremo agora providenci­a.

O que ocorre é, pois, um confronto entre desejo de poder e, de outra parte, direitos civis. Os procurador­es e a Polícia Federal querem o poder de requisitar dados pessoais e empresaria­is sigilosos, por exemplo de imposto de renda, e deles se valerem à vontade. Sem depender da autorizaçã­o de juízes. Mas esses dados integram o direito à privacidad­e pessoal e à segurança empresaria­l, não devendo estar sujeitos a manipulaçõ­es que nem sempre serão isentas de propósitos reprovávei­s. O direito de entrar na vida de qualquer, com ou sem motivo justificáv­el, expõe todo cidadão a arbitrarie­dades e perda de direitos, que a Lava Jato cometeu e exibiu sem cessar.

Vê-se, enfim, que decisões vitais para a democracia, como para a vida de cada um de nós, têm estado à margem não só da compreensã­o pública, mas até do simples conhecimen­to. Por situação assim é que os Bolsonaros podem ser Bolsonaros. Mas em nossa vizinhança, e ainda no Líbano, na Argélia, na França, Irã, Hong Kong, e outros, soa o despertado­r democrátic­o.

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