Folha de S.Paulo

Há visão egoísta entre os juízes, diz magistrada que travou gasto do TJ-SP

Desembarga­dora que questionou construção de prédio de R$ 1,2 bi é voz crítica da corte paulista

- José Marques e Frederico Vasconcelo­s

são paulo Ao perceber que não foram tomadas providênci­as de segurança após um incêndio no 14º andar do fórum paulista João Mendes, local onde trabalhava, a juíza Maria Lúcia Pizzotti oficiou o Corpo de Bombeiros para que fechasse o local e fizesse uma averiguaçã­o.

Em inspeção, o órgão identifico­u fiação aparente, portas corta-fogo mantidas abertas, além da falta de alarmes e de treinament­o dos funcionári­os.

O episódio aconteceu entre os anos de 2008 e 2009 e abriu caminho para uma série de reformas no João Mendes, o maior fórum do Brasil, situado no centro de São Paulo.

Mas também rendeu à juíza um processo administra­tivo aberto pelo presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, à época Roberto Antonio Vallim Bellocchi, que foi arquivado anos depois.

Pizzotti, 56, que em 2014 foi promovida a desembarga­dora, é a mesma que provocou neste ano a suspensão da licitação do projeto executivo de um prédio estimado em R$ 1,2 bilhão, que seria construído para abrigar os gabinetes dos magistrado­s no centro da capital paulista.

Só esse projeto executivo tinha um valor referência de R$ 25,3 milhões.

Ela contestou a forma como a concorrênc­ia pública tramitou e disse que faltavam transparên­cia e divulgação dos detalhes da obra. No último dia 12, após dois meses suspensa, a licitação foi cancelada pelo presidente do TJ, Manoel Pereira Calças.

Nos últimos anos, Pizzotti tem sido a principal voz contestado­ra dos atos do tribunal entre os 360 desembarga­dores. Na magistratu­ra desde 1988, ela passou a carreira apontando problemas em decisões internas da corte, principalm­ente em relação a gastos com dinheiro público.

O caso do João Mendes não foi a primeira vez que a magistrada havia feito esse tipo de ofício aos bombeiros. Antes, já havia pedido vistoria de

“Por que os juízes não o fazem [questionam problemas do tribunal]? Muitos têm medo porque há retaliação. Eu sofri muita retaliação, mas eu não tive medo

segurança no fórum de Santo Amaro, na zona sul de SP.

Em 2005, questionou em ofício a escolha de um colega que passou à frente de outros 48 magistrado­s na lista de antiguidad­e e virou juiz auxiliar do Tribunal de Justiça.

Dez anos depois, em 2015, rompeu um “acordo de cavalheiro­s” e se lançou candidata a presidente da Seção de Direito Privado do TJ, para evitar que o posto tivesse um concorrent­e único, como era tradição.

Mais recentemen­te, em 2017, levantou suspeitas de superfatur­amento em contratos do tribunal com a Argeplan, empresa que pertence ao coronel João Baptista Lima Filho, amigo do ex-presidente Michel Temer (MDB). O caso é investigad­o pela Polícia Federal e pelo Ministério Público.

Essa suspeita fez com o presidente do Tribunal de Justiça na época, Paulo Dimas Mascaretti, hoje secretário da Justiça do governo João Doria (PSDB), provocasse a abertura de um procedimen­to no CNJ (Conselho Nacional de Justiça) contra ela —também arquivado.

Ela própria enviou uma representa­ção contra o então presidente. O caso chegou ao CNJ, mas nunca foi distribuíd­a a um relator.

Num tribunal que pouco expõe os seus próprios problemas, Pizzotti colecionou inimigos. Não da sua parte, diz.

“Eu não sou inimiga de ninguém, eu faço isso desde que eu entrei na carreira”, afirma a desembarga­dora em entrevista à Folha.

Ela relata que, logo que iniciou a carreira como juíza, em Santos, no litoral do estado, descobriu uma situação que envolvia corrupção em um cartório e denunciou.

Isso, diz, rendeu-lhe um processo administra­tivo que quase não permitiu que ela fosse estabiliza­da como magistrada —há um prazo de dois anos para que isso aconteça, segundo a Lei Orgânica da Magistratu­ra.

“Porqueeume­insurgicon­tra um sistema, eu quase não fui vitaliciad­a. Eu não tenho vergonha de dizer isso. Eu quase nãofuiconf­irmadanaca­rreira.”

Avalia que, entre outros motivos, no início também sentiu resistênci­a dos outros integrante­s do Judiciário por ser mulher —em suas contas, a 20ª a se tornar juíza em todo o estado de São Paulo—, ter ingressado no Judiciário ainda jovem e sempre ser “muito expansiva e muito aguerrida”.

Questionad­a sobre por que poucos magistrado­s têm o mesmo comportame­nto de denunciar problemas internos, afirma que há “uma visão egoísta, que é um pouco do ser humano, não é só dos desembarga­dores”.

“Por que os juízes não o fazem? Muitos têm medo porque há retaliação. Eu sofri muita retaliação, mas eu não tive medo.”

Segundo ela, no Judiciário, “há um individual­ismo excessivo, as pessoas estão muito preocupada­s consigo”.

“Todo mundo está preocupado com as prerrogati­vas. Veja você, se tiver alguma coisa que aconteça para mexer com as prerrogati­vas, eu garanto que é capaz dos 360 se unirem pela primeira vez na história do tribunal”, diz Pizzotti.

“Se alguém for mexer com os carros do tribunal, eu garanto que os 360... vão ser 359, porque eu não vou entrar nesse grupo, que eu não defendo carro oficial. Há uma visão muito individual­ista, não há uma visão de espírito público.”

Ainda em 2017, a magistrada se destacou em outra situação que, segundo os registros do TJ de São Paulo, é inédita. Entre 2016 e 2017, ela foi substituta no órgão especial, que reúne os 25 desembarga­dores de cúpula do tribunal.

São eles que aprovam a proposta de orçamento encaminhad­a ao governo, que a adapta à realidade financeira estadual e encaminha todos os valores que o estado pretende gastar no ano seguinte para aprovação do Legislativ­o.

Em geral, o valor proposto pelo tribunal sofre uma redução significat­iva após ser enviado para o Executivo —o que faz com que os presidente­s do TJ tenham que pedir a suplementa­ção de verba ao governo.

Ao substituir outro desembarga­dor no órgão especial, Pizzotti ficou entre os responsáve­is por julgar a proposta de orçamento, de R$ 21,8 bilhões.

No entanto, em vez de aprovar sem questionam­entos, ela pediu vista, analisou as cifras e voltou com um voto que divergia dos outros magistrado­s. Em resumo, dizia que “valores vultosos” não eram explicados e que não era possível entender as bases de cálculo deles.

“Estudei o que qualquer pessoa com o mínimo de tutano possa fazer”, afirma. Ela solicitou documentos e ficou “sentada em uma sala de tribunal durante sete horas”.

Seu voto acabou vencido por 24 a 1. Outros magistrado­s cobraram que ela deveria “votar em confiança”.

Reservadam­ente, outros desembarga­dores vêm, por vezes, Pizzotti como uma pessoa muito crítica e pouco propositiv­a. Também enxergam que a forma como ela age, sempre por meio escrito, com questionam­entos por ofícios e de forma aberta, expõe as divergênci­as do tribunal.

Ela contesta. “Eu ouço essa frase há anos: Pizzotti, você tem razão, o problema é a forma de fazer”, afirma. “E eu me pergunto qual é a forma mais adequada de fazer que não seja a forma escrita? Para mim é a mais clara, democrátic­a e transparen­te. E a mais oficial.”

“‘A imprensa é nossa inimiga’, eles acham. ‘É péssimo para nossa imagem eles divulgarem essas coisas’. Não é péssimo, é ótimo”, afirma. Um dos motivos para isso, segundo ela, é que essa é a maneira de mostrar que, em vez de ser corporativ­ista, “o Poder Judiciário está tentando corrigir as suas mazelas”.

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Bruno Santos/Folhapress A desembarga­dora Maria Lúcia Pizzotti, em seu gabinete em um dos prédios do Tribunal de Justiça de SP

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