Folha de S.Paulo

Comunidade boliviana em São Paulo vai às ruas para defender Evo Morales

Maioria votou em ex-presidente; polarizaçã­o política afeta imigrantes e gera tensão em entidades

- Flávia Mantovani

são paulo Com seus comércios com placa em espanhol e imigrantes vendendo comidas típicas nas calçadas, a rua Coimbra, no Brás, parece uma extensão da Bolívia em São Paulo.

A crise política no país vizinho é assunto de rodas de conversa de vendedores e frequentad­ores, mas muitos não querem dar entrevista. Justificam que a situação está tensa e encerram o papo, embora um deles tenha deixado escapar que aqui estão todos com Evo.

De fato, quase todos os que foram abordados pela Folha declararam seu apoio ao expresiden­te. Muitos deles vêm de La Paz e da região de El Alto, onde Evo tem forte respaldo.

Apesar disso, a polarizaçã­o política que tomou conta da Bolívia também se reflete na comunidade em São Paulo e tem gerado tensão e brigas nas entidades que representa­m os imigrantes. Há ainda a expectativ­a de que o governo atual troque em breve os diplomatas que atuam no Brasil.

Segundo a apuração da eleição —questionad­a por denúncias de irregulari­dades—, 70% dos bolivianos que vivem no Brasil votaram no exmandatár­io. Foram cerca de 44 mil eleitores no país, dos quais 97% vivem em São Paulo e em cidades dos arredores.

“Ele fez estradas, hospitais, habitação. Queria que continuass­e, pois tinha projetos de grandes obras para completar”, diz o cabeleirei­ro Roberto, 35, que vive no Brasil há um ano e pediu que seu sobrenome não fosse divulgado.

“Houve fraude, mas não de Evo. Ela é a fraude”, acrescento­u, referindo-se à autoprocla­mada presidente Jeanine Añez, que assumiu o governo interino em um processo também controvers­o.

Roberto está entre as centenas de pessoas que participar­am de uma marcha no último domingo (17) na avenida Paulista em apoio a Evo Morales.

Lídia Mamani, 31, também foi. “Não somos de nenhum partido. Levantamo-nos porque somos unidos”, diz a boliviana, que vive no Brasil há dois anos. “Compraram os policiais no nosso país. Eles estão matando seus próprios irmãos.” Para ela, há mais mortos do que os divulgados pelo governo e pela imprensa local, e a oposição foi financiada pelos Estados Unidos.

Outro ato foi convocado para este domingo (24), também na avenida Paulista. Quem organiza os protestos é o Comitê Brasileiro de Solidaried­ade ao Povo Boliviano contra o Golpe, criado dois dias depois da renúncia de Evo Morales.

“Temos família lá, estamos muito preocupado­s. Estão queimando casas, perseguind­o dirigentes sindicais e reprimindo as pessoas”, diz a psicóloga Lineth Bustamante, 38, uma das organizado­ras.

Segundo ela, que vive há oito anos no Brasil, o grupo é formado por cerca de 90 pessoas, a maioria brasileiro­s. Na manifestaç­ão, entretanto, a prevalênci­a era de bolivianos, conta.

“Ficamos surpresos porque vieram pessoas que moram em Guarulhos, em Itaquaquec­etuba, várias cidades.”

Para Lineth, Evo foi “o primeiro presidente que governou com o coração, e não por interesses partidário­s”. “Ele esteve na vanguarda das lutas populares, fez políticas sociais para crianças, mulheres.”

A psicóloga afirma acreditar que as denúncias de fraude foram fruto do “desespero” da oposição. “Isso já estava planejado. Eles tinham que inventar alguma coisa.”

A psicóloga diz, porém, que o ex-mandatário errou ao se candidatar para um quarto mandato e que ele deveria ter preparado um sucessor.

Presidente da Associação de Residentes Bolivianos, a designer Rosana Camacho, 56, diz que essa e outras entidades de imigrantes estão sendo pressionad­as por partidário­s dos dois lados a tomar uma posição. “Não partimos para a agressão física, mas houve agressões verbais”, diz.

“As pessoas se deixam levar pelas paixões. Mas somos apolíticos e apartidári­os, não podemos nos manifestar. Seria conduzir a comunidade de maneira equivocada.”

Segundo Rosana, já havia uma forte divisão entre os bolivianos desde 2016, ano em que Evo fez um referendo para saber se poderia se candidatar pela quarta vez consecutiv­a.

Na ocasião, perdeu a votação, mas recorreu à Justiça para disputar o pleito. Antes das eleições de outubro, conta, um grupo de imigrantes fez um ato em São Paulo contra o ex-presidente socialista.

Ela diz ainda que há muita campanha de ódio e desinforma­ção neste momento.

Jornalista de uma publicação da comunidade e vice-presidente do Círculo de Comunicado­res Imigrantes, Francisco Roca Matias, 37, não considera que tenha havido um golpe de Estado na Bolívia.

“Foi tudo dentro da Constituiç­ão. A presidente atual só está lá para convocar novas eleições. É isso que as pessoas não estão entendendo, colocaram na cabeça delas que vão perder todos os benefícios sociais. Os dirigentes [socialista­s] estão tentando tornar o país ingovernáv­el e motivando as pessoas humildes a entregar sua vida por alguém que só quer voltar ao poder.”

Ele menciona irregulari

dades no processo eleitoral e diz que não acredita que Evo tenha renunciado buscando evitar derramamen­to de sangue. “Foi uma estratégia política. Tanto que agora ele quer voltar [do México, onde está asilado] e tomar o poder de qualquer maneira.”

Também afirma que, segundo uma pesquisa de boca de urna feita com 500 pessoas por um grupo de amigos na eleição boliviana em São Paulo, os socialista­s teriam 65% de intenção de voto. “Tenho quase certeza de que houve fraude aqui também. A margem de erro não pode ser tão grande.”

Francisco diz que lamenta as mortes de manifestan­tes e que policiais também foram atingidos, mas se salvaram por usarem proteção. Natural do estado de Beni, no leste da Bolívia, ele diz que sofreu preconceit­o quando morou em Cochabamba, reduto dos socialista­s.

“Percebi lá que o racismo pode vir de qualquer lugar. Não sou contra os indígenas, de forma alguma. Sou contra o estilo de política que Evo está fazendo. Alguns bolivianos em São Paulo estão tendo o mesmo ódio contra quem não o apoia.”

Há 20 anos no Brasil, o comerciant­e Chalo Mendonza, 57, é apontado por uma vizinha como “o único na rua Coimbra que está contra Evo”. Ele ri quando sabe disso e emenda: “Estou no meio. Nem para este lado nem para o outro.”

Para Chalo, o primeiro mandato de Evo foi positivo. “Todo mundo gostava dele, até no exterior. O segundo governo foi mais ou menos. No terceiro, só alguns se beneficiar­am.”

Ele nega que haja animosidad­e entre os compatriot­as. “Nós não discutimos, dialogamos. Eles têm a opinião deles e eu a minha. Alguns me dizem: ‘Você é do império’. Respondo: ‘O império nem me conhece!’. Eu só quero que volte a paz.”

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Fotos Adriano Vizoni/Folhapress Lineth Bustamante, que organiza atos pró-Evo na avenida Paulista
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Francisco Roca, que escreve em jornal para imigrantes e acha que não houve golpe em seu país

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